São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2004

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"O DIA EM QUE MATEI MEU PAI"

Obra vê parricídio com finos toques

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O parricídio é dessas pedras angulares na história da arte. Na literatura, foi abordado por Dostoiévski, em "Os Irmãos Karamázov". No teatro, por Sófocles, em "Édipo Rei". Os dois textos são referências freqüentes em "O Dia em que Matei meu Pai", do jornalista Mario Sabino, editor-executivo da revista "Veja".
A questão, sem dúvida, marca os primórdios dos tempos, ou dos novos tempos. Na mitologia grega, Zeus teve de matar o pai Cronos, o Tempo, não só para não ser devorado por ele, mas também para instaurar uma nova ordem. Da era dos titãs passamos ao domínio dos deuses do Olimpo.
Vale a pena perguntar, então, por que, após um intróito digno de Kafka, o parricídio não mude nada no cerne de "O Dia...". A ordem a que o pai pertence, "dos ricos e poderosos", segue inalterada com toda a banalidade de suas relações perversas.
Em princípio, nota-se que o parricida do romance de Sabino é bem menos um édipo do que um narciso, que pretende que tudo gire em torno de si. Desta forma, não deixa de emular o pai arrogante, que animaliza os pobres e coisifica as mulheres. Crê ser diferente, mas seu pretenso socialismo é de cartilha e sua erudição redunda na esterilidade. Os dois desenvolvem uma miopia (cegueira, no final) da vontade, que os impede de ver o mundo a seu redor. Só observam o próprio umbigo.
Por isso, o assassinato não resulta em nada, no plano alegórico. O que existe de fato, entre pai e filho, é uma boa dose de desejo homossexual reprimido. O protagonista cobiça as namoradas do pai. Imagina-o sodomizando-as. Sustentado financeiramente por ele, diz sentir-se sua "puta". A reciprocidade do desejo revela-se (embora possa ser intuída antes) no desenlace melodramático.
Para fugir dessa realidade traumática, o herói inventa mil subterfúgios, recheando de citações cultas sua narrativa, que vai desfiando para a psicóloga de um manicômio onde foi encerrado. Ele não hesita em inserir, no meio de sua história, um romance de própria lavra, onde, por meio de um entrecho tirante a "De Olhos Bem Fechados", pretende discutir a genealogia do Mal.
O personagem gosta de esconder-se atrás desses grandes absolutos: Bem e Mal, Deus, o tudo e o nada. Nesse sentido, alinha-se à estirpe dos heróis de hoje. Em vez de mergulharem fundo em sua psique, constroem-se por meio de centenas de referências doutas, que salpicam a todo momento.
A história narrada abunda de finos toques, de Hegel à "commedia dell'arte", sem que esses elementos sejam tratados dramaticamente. Ouvimos falar deles, mas não os vemos como se viessem da mesma forma que a tinta no quadro da narrativa.
O resultado são personagens planos ou amorfos (aliás, o próprio protagonista lembra que um professor o tachou de ter "cor de geléia") e tramas que parecem repercutir dezenas de outras.
Tudo talvez não devesse soar tão sério. Há uma boa dose de humor permeando essas relações, sobretudo no romance escrito pelo protagonista, chamado ironicamente de "Futuro". Uma comicidade que talvez represente a risada de um louco caçoando de nossa atual ausência de perspectiva.


O Dia em que Matei Meu Pai
   
Autor: Mario Sabino
Editora: Record
Quanto: R$ 25,90 (224 págs.)


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