São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O homem das arábias


Peter O'Toole deslumbra no simpático "Vênus'; resta saber se ele ganha o Oscar nesta sua oitava indicação

LAWRENCE DA Arábia passou por mim duas vezes na vida. Falo de Peter O'Toole, claro. A primeira foi nos palcos, quando O'Toole representou o amigo Jeffrey Bernard: Bernard foi um dos maiores cronistas ingleses do século 20 e a sua vida de boêmia intensa no bairro londrino do Soho virou lenda muito antes de Bernard morrer.
E a segunda, ironia do destino, aconteceu meses mais tarde, muito apropriadamente num restaurante do Soho, quando O'Toole "himself" almoçava numa mesa próxima. Um certo embaraço e uma réstia de decência impediram o presente colunista de se lançar aos pés do homem.
Mentira, leitores. Eu lancei-me mesmo aos pés do homem e até disse a banalidade da praxe. "Gosto muito do seu trabalho, mr. O'Toole". O homem podia sacudir o elogio como quem sacode a caspa e regressar para o seu copo (curiosamente, de água) e para um prato que, se a memória não me trai, tinha mais salada do que outra coisa.
Mas, por gentileza, perguntou-me a procedência e depois disse que tinha andado por Portugal e gostado. "Very much like Ireland", disse ele, ou disseram os olhos por ele, porque no caso de O'Toole o olhar precede qualquer palavra.
Aliás, não apenas em O'Toole: a observação é válida para colegas mortos (como Richard Harris) ou vivos (como Albert Finney) que, depois de um namoro breve com o método Stanislavski, regressaram naturalmente às sábias palavras de Noel Coward ("Decora as falas, não atropeles a mobília"), prontos para deslumbrar.
Como O'Toole deslumbra em "Vênus", filme simpático que estréia nesta sexta no Brasil e onde O'Toole é, literalmente, um velho ator com idade para ter juízo. Mas O'Toole não tem juízo -ou, como se diz em relação às touradas, ele pode já não ser praticante, mas continua um aficionado. Neste caso, aficionado de uma pequena Lolita que lhe entra na vida e que ele, coitado, tenta seduzir e, quem sabe, tourear.
Fatalmente, a conquista será outra, e se Shakespeare falava no leite da ternura humana, O'Toole confere um rosto às palavras do bardo. É impossível não sair da sala de rastos com a elegância de O'Toole. Não, a questão já não está em "representar". Está em algo que se aproxima da mais usada e abusada palavra de todas: a palavra "sublime".
Por tudo isso, o interesse do próximo Oscar não estará nas injustiças cometidas a Scorsese. Por Deus: Scorsese é novo, "Os Infiltrados" pode ser excelente, mas o ano (e a direção) pertence a Clint Eastwood e a "Cartas de Iwo Jima". Em 1992, "Os Imperdoáveis" encerrou o western, ou seja, encerrou qualquer possibilidade de heroísmo fátuo. Depois de Iwo Jima, qualquer filme de guerra terá um gigante para contornar, partindo do pressuposto de que será possível contornar o mais perfeito filme sobre a sacralidade da vida humana. Duvidoso. Outras histórias.
Porque a história de domingo estará em saber se ainda existe vergonha na cara de Hollywood. E, se, à oitava indicação, o homem das arábias regressa finalmente ao Soho com uma estatueta dourada para admirar entre saladas.


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