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JOÃO PEREIRA COUTINHO
O homem das arábias
Peter O'Toole deslumbra no simpático "Vênus'; resta saber se ele ganha o Oscar nesta sua oitava indicação
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LAWRENCE DA Arábia passou
por mim duas vezes na vida.
Falo de Peter O'Toole, claro. A
primeira foi nos palcos, quando
O'Toole representou o amigo Jeffrey Bernard: Bernard foi um dos
maiores cronistas ingleses do século
20 e a sua vida de boêmia intensa no
bairro londrino do Soho virou lenda
muito antes de Bernard morrer.
E a segunda, ironia do destino,
aconteceu meses mais tarde, muito
apropriadamente num restaurante
do Soho, quando O'Toole "himself"
almoçava numa mesa próxima. Um
certo embaraço e uma réstia de decência impediram o presente colunista de se lançar aos pés do homem.
Mentira, leitores. Eu lancei-me
mesmo aos pés do homem e até disse a banalidade da praxe. "Gosto
muito do seu trabalho, mr. O'Toole".
O homem podia sacudir o elogio como quem sacode a caspa e regressar
para o seu copo (curiosamente, de
água) e para um prato que, se a memória não me trai, tinha mais salada
do que outra coisa.
Mas, por gentileza, perguntou-me
a procedência e depois disse que tinha andado por Portugal e gostado.
"Very much like Ireland", disse ele,
ou disseram os olhos por ele, porque
no caso de O'Toole o olhar precede
qualquer palavra.
Aliás, não apenas em O'Toole: a
observação é válida para colegas
mortos (como Richard Harris) ou
vivos (como Albert Finney) que, depois de um namoro breve com o método Stanislavski, regressaram naturalmente às sábias palavras de
Noel Coward ("Decora as falas, não
atropeles a mobília"), prontos para
deslumbrar.
Como O'Toole deslumbra em
"Vênus", filme simpático que estréia
nesta sexta no Brasil e onde O'Toole
é, literalmente, um velho ator com
idade para ter juízo. Mas O'Toole
não tem juízo -ou, como se diz em
relação às touradas, ele pode já não
ser praticante, mas continua um aficionado. Neste caso, aficionado de
uma pequena Lolita que lhe entra na
vida e que ele, coitado, tenta seduzir
e, quem sabe, tourear.
Fatalmente, a conquista será outra, e se Shakespeare falava no leite
da ternura humana, O'Toole confere
um rosto às palavras do bardo. É impossível não sair da sala de rastos
com a elegância de O'Toole. Não, a
questão já não está em "representar". Está em algo que se aproxima
da mais usada e abusada palavra de
todas: a palavra "sublime".
Por tudo isso, o interesse do próximo Oscar não estará nas injustiças
cometidas a Scorsese. Por Deus:
Scorsese é novo, "Os Infiltrados" pode ser excelente, mas o ano (e a direção) pertence a Clint Eastwood e a "Cartas de Iwo Jima". Em 1992, "Os
Imperdoáveis" encerrou o western,
ou seja, encerrou qualquer possibilidade de heroísmo fátuo. Depois de
Iwo Jima, qualquer filme de guerra
terá um gigante para contornar, partindo do pressuposto de que será
possível contornar o mais perfeito
filme sobre a sacralidade da vida humana. Duvidoso. Outras histórias.
Porque a história de domingo estará em saber se ainda existe vergonha na cara de Hollywood. E, se, à oitava indicação, o homem das arábias
regressa finalmente ao Soho com
uma estatueta dourada para admirar entre saladas.
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