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ARTIGOS
Publicidade que usa Che Guevara exibe farsa da "cultura pop internacional"
TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha
A mera difusão sem alarde do
comercial em que um ator fantasiado de Che Guevara tenta vender
detergente já deveria ser profundamente constrangedora para o
anunciante, esse ator, a agência de
publicidade e as pessoas que o vissem.
Como empáfia e desfaçatez não
são incomuns em certos meios publicitários, o gozoso autor dessa
criação não se conteve e cacarejou
ao redor de seu ovo. Constrangidos -pelo anunciante, pelo ator e
pela agência de publicidade- ficamos assim apenas nós, o público.
Dependendo da opção ideológica de cada um, Che Guevara foi
um criminoso ou um mártir na luta contra as ditaduras. Se criminoso, não deveria aparecer em publicidade na TV: não se ganha dinheiro com a exploração vil de
atos que uma sociedade reprova.
Se mártir, o respeito por alguém
que deu a vida por suas idéias
(opostas ao que esse comercial representa) deveria deixá-lo fora
dessas manipulações. Criminosa
ou mártir, a pessoa de Che Guevara foi assassinada sem julgamento,
suas mãos foram decepadas e seu
cadáver enterrado em cova não
marcada. Um ser humano que teve esse fim não merece ter outra
morte como vendedor de detergente nas mãos de publicitários à
cata atormentada de uma idéia
rentável, custe o que custar.
O publicitário responsável pela
peça inglória diz que em outros
tempos esse comercial (que ele
chama de filme) assustaria um
conservador de direita e seria encarado como heresia pelo homem
de esquerda, mas que, hoje, não
haveria mais susto e heresia porque Che estaria integrado à "cultura pop internacional". O que ele
insinua em subtexto é que se teria
perdido o senso histórico e a capacidade de distinguir entre valores,
de modo que um criminoso ou
mártir e um detergente seriam
uma única e engraçada coisa.
Por insuficiência analítica ou deliberadamente, o publicitário confunde a realidade com aquilo que
gostaria que acontecesse.
Não é mistério que muita publicidade só funciona quando uma
coisa vale outra, quando parâmetros e pontos de fuga são abolidos.
Isso significa que a publicidade
precisa, a qualquer preço, colocar
todos os valores num mesmo plano (rebaixado) e pulverizá-los.
Ao contrário do que frequentemente se diz em publicidade, o objetivo da publicidade não é mostrar as diferenças. Isso é conversa
para anunciante. Na verdade, para
funcionar, muita publicidade precisa criar e sustentar um caldo cultural homogeneizado e pasteurizado em que tudo tem o mesmo
valor, quer dizer, valor nenhum.
Por isso é que a publicidade tenta desesperadamente criar essa
"cultura pop internacional" na
qual Che Guevara não seria mais
nem um susto, nem uma heresia e,
sim, garoto-propaganda.
Mas o publicitário está confundindo os limites estreitos de seu
mundo mercantilizado com a realidade externa.
Aqui fora, ainda há outros valores além daquele que propõe como unidade básica o sucesso comercial à custa de qualquer coisa,
como uma piada sobre um cadáver, um símbolo ou uma memória.
Esse comercial infeliz nada tem
de pós-moderno, faz parte do velho universo da mesmice que muita publicidade (e a televisão de interesses apenas comerciais) propõe de modo sempre mais descarado.
O que os autores desse comercial
mais desejam é a polêmica, que
lhes permita correr para o anunciante e dizer: "Viu como falam da
campanha?" (E, aqui, têm razão
no uso do termo militar: é de guerra cultural que se trata.)
Criticá-los é cair na armadilha.
Mas silenciar é acumpliciar-se.
Portanto, é inevitável correr o
risco de afirmar: a "cultura pop internacional" liquidificada manifesta nesse comercial, incapaz de
distinguir entre valores, é o espelho no qual uma parcela da publicidade se reflete, mas que não reflete -ainda, em todo caso- toda a cultura.
Sustos e gritos de heresia podem
não mais existir, porém a cultura
não-publicitária ainda se lembra
de sentimentos como o de aversão
diante das gracinhas propostas
por muitos desses "signos pop" de
que fala o publicitário.
São comerciais desse nível, e um
conselho de auto-regulamentação
corporativo e ignorante dos sentidos da palavra ética -ele mesmo
uma piada tão sem graça quanto
centenas de outras piadas publicitárias-, que dão urgência aos pedidos de instalação de um conselho superior do audiovisual que
dialogue com os interessados e a
sociedade na busca de um uso minimamente digno para um veículo
que é serviço público.
Teixeira Coelho é ensaísta e escritor, autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" e "Dicionário Crítico de Política Cultural", e professor da
Escola de Comunicações e Artes da USP.
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