São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 1998

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ARTIGOS
Publicidade que usa Che Guevara exibe farsa da "cultura pop internacional"

TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha

A mera difusão sem alarde do comercial em que um ator fantasiado de Che Guevara tenta vender detergente já deveria ser profundamente constrangedora para o anunciante, esse ator, a agência de publicidade e as pessoas que o vissem.
Como empáfia e desfaçatez não são incomuns em certos meios publicitários, o gozoso autor dessa criação não se conteve e cacarejou ao redor de seu ovo. Constrangidos -pelo anunciante, pelo ator e pela agência de publicidade- ficamos assim apenas nós, o público.
Dependendo da opção ideológica de cada um, Che Guevara foi um criminoso ou um mártir na luta contra as ditaduras. Se criminoso, não deveria aparecer em publicidade na TV: não se ganha dinheiro com a exploração vil de atos que uma sociedade reprova.
Se mártir, o respeito por alguém que deu a vida por suas idéias (opostas ao que esse comercial representa) deveria deixá-lo fora dessas manipulações. Criminosa ou mártir, a pessoa de Che Guevara foi assassinada sem julgamento, suas mãos foram decepadas e seu cadáver enterrado em cova não marcada. Um ser humano que teve esse fim não merece ter outra morte como vendedor de detergente nas mãos de publicitários à cata atormentada de uma idéia rentável, custe o que custar.
O publicitário responsável pela peça inglória diz que em outros tempos esse comercial (que ele chama de filme) assustaria um conservador de direita e seria encarado como heresia pelo homem de esquerda, mas que, hoje, não haveria mais susto e heresia porque Che estaria integrado à "cultura pop internacional". O que ele insinua em subtexto é que se teria perdido o senso histórico e a capacidade de distinguir entre valores, de modo que um criminoso ou mártir e um detergente seriam uma única e engraçada coisa.
Por insuficiência analítica ou deliberadamente, o publicitário confunde a realidade com aquilo que gostaria que acontecesse.
Não é mistério que muita publicidade só funciona quando uma coisa vale outra, quando parâmetros e pontos de fuga são abolidos. Isso significa que a publicidade precisa, a qualquer preço, colocar todos os valores num mesmo plano (rebaixado) e pulverizá-los.
Ao contrário do que frequentemente se diz em publicidade, o objetivo da publicidade não é mostrar as diferenças. Isso é conversa para anunciante. Na verdade, para funcionar, muita publicidade precisa criar e sustentar um caldo cultural homogeneizado e pasteurizado em que tudo tem o mesmo valor, quer dizer, valor nenhum.
Por isso é que a publicidade tenta desesperadamente criar essa "cultura pop internacional" na qual Che Guevara não seria mais nem um susto, nem uma heresia e, sim, garoto-propaganda.
Mas o publicitário está confundindo os limites estreitos de seu mundo mercantilizado com a realidade externa.
Aqui fora, ainda há outros valores além daquele que propõe como unidade básica o sucesso comercial à custa de qualquer coisa, como uma piada sobre um cadáver, um símbolo ou uma memória.
Esse comercial infeliz nada tem de pós-moderno, faz parte do velho universo da mesmice que muita publicidade (e a televisão de interesses apenas comerciais) propõe de modo sempre mais descarado.
O que os autores desse comercial mais desejam é a polêmica, que lhes permita correr para o anunciante e dizer: "Viu como falam da campanha?" (E, aqui, têm razão no uso do termo militar: é de guerra cultural que se trata.)
Criticá-los é cair na armadilha. Mas silenciar é acumpliciar-se.
Portanto, é inevitável correr o risco de afirmar: a "cultura pop internacional" liquidificada manifesta nesse comercial, incapaz de distinguir entre valores, é o espelho no qual uma parcela da publicidade se reflete, mas que não reflete -ainda, em todo caso- toda a cultura.
Sustos e gritos de heresia podem não mais existir, porém a cultura não-publicitária ainda se lembra de sentimentos como o de aversão diante das gracinhas propostas por muitos desses "signos pop" de que fala o publicitário.
São comerciais desse nível, e um conselho de auto-regulamentação corporativo e ignorante dos sentidos da palavra ética -ele mesmo uma piada tão sem graça quanto centenas de outras piadas publicitárias-, que dão urgência aos pedidos de instalação de um conselho superior do audiovisual que dialogue com os interessados e a sociedade na busca de um uso minimamente digno para um veículo que é serviço público.


Teixeira Coelho é ensaísta e escritor, autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" e "Dicionário Crítico de Política Cultural", e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.



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