São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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CRÍTICA

Polêmica de Clodovil e Marta tem 20 anos

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Apesar de não dar para levar muito a sério o bafafá provocado pela língua de trapo de Clodovil na semana passada, há uma barafunda de questões de gênero que vale a pena registrar em mais uma polêmica envolvendo apresentadores de TV. Até o fechamento desta coluna, foram dois os destampatórios que Clodovil dirigiu à prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, em seu programa "A Casa É Sua".
Na quarta-feira, a propósito de uma entrevista em que cantor Agnaldo Timóteo contava ter sido proibido de vender seus discos na rua, como ambulante, Clodovil soltou cobras e lagartos contra Marta. No dia seguinte, depois que a prefeita anunciou a intenção de processá-lo, o apresentador aparentemente baixou o tom, pediu desculpas, mas acabou não resistindo e voltando à carga. Em tom de indignação, Clodovil disse que a prefeita não tinha cultura, pois "falava sobre sexo" na televisão, afirmou que haveria algo de suspeito no fato de ela ainda usar o sobrenome do ex-marido, referiu-se às paradas gays e à proposta de união civil homossexual como "bandalha" etc.
As diferenças entre Clodovil e Marta não são de hoje. Ambos estiveram na equipe de "TV Mulher" nos anos 80, o programa feminino da Globo que adicionou temas como sexualidade e carreira ao tradicional leque de amenidades. Enquanto o quadro de Marta fazia uma espécie de pedagogia sexual feminista, Clodovil apostava na maledicência contra tudo e todos. Sua atuação era para lá de ambígua: embora ele desse vazão a trejeitos e impostação de voz tradicionalmente identificados e tantas vezes caricaturizados pela TV como típicos e constitutivos dos homossexuais, ele continuava no armário.
Digamos que, se Marta representava à época uma visão mais progressista da sexualidade e da relação entre gêneros que vinha se instalando na sociedade brasileira desde os anos 70, Clodovil mostrava a força que ainda tinha o estereótipo do feminino como o lugar da inveja, do ressentimento, da mesquinharia doméstica e da aspiração descerebrada por distinção e elegância.
Vinte anos mais tarde, a fúria de Clodovil contra Marta, para além dos reparos que podem ser identificados muito vagamente como políticos, ainda expressa esse antagonismo. Confortável no papel reservado pelo machismo mais tacanho aos homossexuais, ele cumpre à risca aquilo que se espera de uma "bicha": sua persona televisiva é fofoqueira, venenosa, temperamental, fútil, vaidosa, misógina etc. A condenação que faz da união civil homossexual, projeto de lei de autoria de Marta quando deputada federal, vai no mesmo sentido que o pensamento mais retrógrado e menos tolerante.
É definitivamente um mundo de pernas para o ar este em que o conservadorismo mais besta encontra um porto tão seguro num personagem como Clodovil.

biabramo.tv@uol.com.br


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