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CRÍTICA
Polêmica de Clodovil e Marta tem 20 anos
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
Apesar de não dar para levar
muito a sério o bafafá provocado pela língua de trapo de
Clodovil na semana passada, há
uma barafunda de questões de
gênero que vale a pena registrar
em mais uma polêmica envolvendo apresentadores de TV. Até
o fechamento desta coluna, foram dois os destampatórios que
Clodovil dirigiu à prefeita de São
Paulo, Marta Suplicy, em seu
programa "A Casa É Sua".
Na quarta-feira, a propósito de
uma entrevista em que cantor
Agnaldo Timóteo contava ter sido proibido de vender seus discos na rua, como ambulante,
Clodovil soltou cobras e lagartos
contra Marta. No dia seguinte,
depois que a prefeita anunciou a
intenção de processá-lo, o apresentador aparentemente baixou
o tom, pediu desculpas, mas acabou não resistindo e voltando à
carga. Em tom de indignação,
Clodovil disse que a prefeita não
tinha cultura, pois "falava sobre
sexo" na televisão, afirmou que
haveria algo de suspeito no fato
de ela ainda usar o sobrenome do
ex-marido, referiu-se às paradas
gays e à proposta de união civil
homossexual como "bandalha"
etc.
As diferenças entre Clodovil e
Marta não são de hoje. Ambos
estiveram na equipe de "TV Mulher" nos anos 80, o programa feminino da Globo que adicionou
temas como sexualidade e carreira ao tradicional leque de amenidades. Enquanto o quadro de
Marta fazia uma espécie de pedagogia sexual feminista, Clodovil
apostava na maledicência contra
tudo e todos. Sua atuação era para lá de ambígua: embora ele desse vazão a trejeitos e impostação
de voz tradicionalmente identificados e tantas vezes caricaturizados pela TV como típicos e constitutivos dos homossexuais, ele
continuava no armário.
Digamos que, se Marta representava à época uma visão mais
progressista da sexualidade e da
relação entre gêneros que vinha
se instalando na sociedade brasileira desde os anos 70, Clodovil
mostrava a força que ainda tinha
o estereótipo do feminino como
o lugar da inveja, do ressentimento, da mesquinharia doméstica e da aspiração descerebrada
por distinção e elegância.
Vinte anos mais tarde, a fúria
de Clodovil contra Marta, para
além dos reparos que podem ser
identificados muito vagamente
como políticos, ainda expressa
esse antagonismo. Confortável
no papel reservado pelo machismo mais tacanho aos homossexuais, ele cumpre à risca aquilo
que se espera de uma "bicha":
sua persona televisiva é fofoqueira, venenosa, temperamental, fútil, vaidosa, misógina etc. A condenação que faz da união civil
homossexual, projeto de lei de
autoria de Marta quando deputada federal, vai no mesmo sentido que o pensamento mais retrógrado e menos tolerante.
É definitivamente um mundo
de pernas para o ar este em que o
conservadorismo mais besta encontra um porto tão seguro num
personagem como Clodovil.
biabramo.tv@uol.com.br
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