São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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Modernismo para as massas

Minissérie conduz público à história privada de personagens de 1922

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Dia desses, Rudá de Andrade estava deixando o carro na oficina, na cidadezinha paulista de Pedra Bela, quando o jovem mecânico pediu para anotar seu nome.
"Rudá de Andrade? Você é parente do Oswald de Andrade?", disse em tom de galhofa o rapaz. "É, sou filho dele com a Pagu", respondeu. "Ele quase caiu pra trás", conta Rudá.
O filho do casal modernista também vive a cena com espanto de "cair de costas". Aos 73 anos, o pesquisador de cinema diz nunca ter ouvido tanta gente nas ruas falando sobre seus pais. E não tem dúvidas sobre como Oswald foi parar na boca do mecânico do município de 6.000 habitantes, onde "não há nem banca de jornal": é o "efeito "Um Só Coração'".
Não é só o jovem de Pedra Bela. A minissérie da Globo, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, vem levando Tarsila, Mário de Andrade, Oswald e toda a trupe modernista quatro noites por semana para a casa de cerca de 1 milhão de pessoas.
Rudá mesmo, o mecânico talvez não tenha se dado conta, está lá. Ele faz parte do seleto time dos personagens dessa novela que podem assistir a si mesmos.
Eles começaram a aparecer só agora. "Um Só Coração" estreou em janeiro, ambientada na São Paulo do emblemático ano de 1922, e as tramas atravessam nesta semana o fim dos anos 30.
Se Rudá aparece garoto, calças curtas e balão vermelho na mão, no circo de Piolim, outra dessas raras personagens que vive dentro e fora dessas telas chega à série nos seus "20 e poucos anos".
Adelaide Guerrini de Andrade, hoje com jovens 85 anos, deve assistir nesta terça à sua estréia nos televisores, vivida pela atriz Júlia Almeida. "Um Só Coração" vai mostrar o começo da paixão dela com Oswald de Andrade Filho, o Nonê (1914-1972), primogênito do escritor de "Pau Brasil".
Pichuca, como era chamada por Nonê, com quem se casou em 1940, vem assistindo à minissérie com um olhar exclusivo. "Conheci todos, todos, todos, todos."
Ela não economiza "todos" para dar idéia dos personagens de "Um Só Coração" que encontrou na vida real: Mário, Tarsila, Pagu, Menotti del Picchia, Luis Martins, Anita Malfatti e longa lista afora.
Só não topou com o Coronel Totonho, Maria Luisa, Samir e outras dezenas de personagens fictícios que completam o elenco.
"A minissérie não tem obrigação com a exatidão histórica ou biográfica", expressa Maria Adelaide Amaral. "Para isso existe uma ampla bibliografia e especialistas muito mais capacitados do que Alcides e eu. A minissérie é sobre a mitologia de uma certa época de São Paulo e seus personagens que fizeram parte dela, ganharam dimensão mítica e, como tal, são tratados, com a liberdade que têm as mitologias."
Dona Adelaide, que conviveu com os "mitos", não é tão rígida quanto a autora da série. "A novela está mexendo muito comigo. Já estava sossegada, agora aparece tudo aquilo outra vez. Fico triste de saudades", diz a viúva de Nonê, com os olhos claros ofegantes, como na pintura que o marido fez dela, pregada sobre a cama.
Não é só a minissérie que tem tirado o sossego dela. Acaba de ser lançado "Dia Seguinte & Outros Dias" (editora Códex), livro que Nonê escreveu entre 1965 e 1972 e que só chega a público agora.
Nele, o artista plástico, presente em "Um Só Coração", narra com estilo próximo ao do pai (e com ilustrações que revelam a influência da "madrasta" Tarsila) fatias importantes de suas memórias, "biscoitos finos" que incluem Adelaide, Oswald, Rudá e outros personagens da história, da minissérie e agora da lembrança do jovem mecânico de Pedra Bela e de milhares de espectadores.


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