São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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CINEMA

Sucesso do filme de Mel Gibson, que já arrecadou mais de US$ 260 milhões nos EUA, reverbera entre executivos

Hollywood busca a fórmula da "Paixão"

SHARON WAXMAN
DO "NEW YORK TIMES", EM LOS ANGELES

Enquanto o sucesso avassalador de "A Paixão de Cristo" reverbera por Hollywood, produtores e executivos de estúdio começam a se indagar se o cinema não tem deixado de lado grandes segmentos do público americano que estão ansiosos por mais produtos de natureza declaradamente religiosa. No fim de semana passado, o filme arrecadou mais US$ 31,6 milhões (cerca de R$ 95 milhões), aumentando sua bilheteria total para US$ 264 milhões (R$ 790 milhões) em menos de três semanas.
Diferentemente de muitos filmes de sucesso comercial imediato, "A Paixão" não viu sua bilheteria cair vertiginosamente após uma estréia grandiosa. A expectativa é que acabe por acumular bem mais de US$ 300 milhões de bilheteria nos EUA, superando facilmente trabalhos de grande orçamento como "Hulk" ou qualquer dos filmes da série "Matrix".
"É impossível ignorar números como esses", diz o veterano produtor de cinema Mark Johnson. "Não dá para dizer que é apenas um acaso feliz. Existe algo nisso que merece ser compreendido."
O sucesso de bilheteria de "A Paixão de Cristo" vem sendo analisado em toda Hollywood, com conclusões sendo repetidas em entrevistas com diversos executivos na semana passada. Nos departamentos de marketing, o filme é considerado um caso de genialidade pura. Seu diretor, Mel Gibson, é visto como alguém que incentivou uma controvérsia que arrancou o filme da periferia para o centro do cenário cultural, criando a impressão de que ele é imperdível, obrigatório.
Poucos nos estúdios duvidam que o filme vá afetar as decisões tomadas em Hollywood a curto e a longo prazo. Alguns já prevêem a chegada de uma onda de filmes baseados em temas do Novo Testamento ou de filmes mais religiosos, de modo geral. "Haverá novos filmes sobre as Sagradas Escrituras -o Velho e o Novo Testamentos?", perguntou Peter Guber, produtor que, no passado, dirigiu a Sony Pictures Entertainment. "É provável que sim."
O mundo da televisão já está reagindo à "Paixão". Na semana passada, a rede ABC pôs no ar o filme "Judas", engavetado havia muito tempo, sobre o discípulo que traiu Jesus. Na guerra de audiência, "Judas" perdeu para "Everybody Loves Raymond" e "C.S.I.: Miami".
Nas semanas que antecederam o lançamento de "A Paixão", enquanto crescia a publicidade em torno do filme, a NBC encomendou um piloto de um programa apocalíptico intitulado "Revelations", baseado em parte no Livro das Revelações (Livro do Apocalipse). Um de seus produtores, Gavin Polone, o descreveu como algo na linha de "Arquivo X", mas tendo como protagonistas uma freira e um cientista cético que começa a acreditar na Bíblia quando vê os eventos do armagedon começando a acontecer.
Polone contou que, para vender a idéia às TVs, citou pesquisas de opinião segundo as quais 78% dos americanos disseram acreditar que as previsões do Livro das Revelações vão se realizar e 39% acham que elas vão se realizar ainda durante suas vidas. ""A Paixão de Cristo" ajudou", disse Polone.
Segundo Peter Guber, o sucesso do filme se choca com os sentimentos de muitos em Hollywood que não gostam da maneira, largamente criticada, como "A Paixão de Cristo" retrata a responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus. "As reações são de incômodo, espanto e repúdio, às vezes tudo ao mesmo tempo", disse.
Mas Jeff Robinov, presidente de produção da Warner que afirma ter gostado do filme, disse não estar certo de que precisa atingir uma platéia voltada à religião. "O sucesso de "A Paixão" não me encoraja a procurar um filme que satisfaça esse grupo. Mas, se um sujeito como Mel Gibson chegasse com um filme que tivesse mensagem sociológica, teológica, uma mensagem religiosa, que fosse controversa, eu não fugiria dele."
Uma pesquisa Gallup feita na semana passada concluiu que 11% dos americanos já assistiram ao filme, e que 34% disseram pretender vê-lo nos cinemas. Baseada numa amostragem de 1.005 adultos, a pesquisa constatou que os mais velhos têm menos chances de assistir ao filme, e que as pessoas que vão à igreja pelo menos uma vez por mês têm probabilidade maior de vê-lo.
Muitos executivos acham que não será fácil reproduzir o sucesso de "A Paixão". O filme não é um simples retrato da crucificação, afirmam, mas uma declaração político-religiosa movida pela intensidade do catolicismo conservador de Mel Gibson. Foi divulgado a ponto de virar fenômeno em função dos protestos de grupos judaicos e também da relutância de Gibson em discutir o filme com seus críticos.
"Quando um filme rende tanto dinheiro quanto "A Paixão", não se pode negar que o público passou uma mensagem à comunidade cinematográfica -mas é uma mensagem assustadora", disse Michael Nozik, produtor do ainda inédito "Diários de Motocicleta", sobre Che Guevara. Nozik está alarmado com a violência presente em "A Paixão de Cristo", afirma, e entristecido diante do "caldeirão de ira" esquentado pelas acusações de anti-semitismo.
Na condição de divisões de grandes conglomerados de mídia preocupados com sua imagem pública, os estúdios de Hollywood sempre evitaram propagar valores senão os mais benignos. Filmes que defendem fortes pontos de vista políticos e, especialmente, religiosos têm tido dificuldade em ganhar luz verde. "Não está claro que Hollywood tenha o apetite ou a atitude para fazer filmes religiosos", disse Guber. O filme de Mel Gibson, afirmou, "a meu ver, possui um ponto de vista politicamente religioso".


Tradução de Clara Allain


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