|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
Desbunde foi alternativa à rigidez da esquerda
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE OPINIÃO
O termo "underground" foi
difundido no Brasil pelo jornal "O Pasquim", lançado em
1969. Era esse o título de uma lendária coluna assinada por Luiz
Carlos Maciel, que acompanhava
a contracultura internacional e
seus similares nacionais. Para ser
sucinto, o lance girava em torno
de sexo, drogas e rock'n'roll. Não
necessariamente nessa ordem, e
não necesariamente do modo como isso veio a se configurar na
atualidade.
Parcelas da juventude norte-americana e internacional viviam
nos anos 60 e no início dos 70 no
mundo da Era de Aquarius. Queriam mudar tudo pacificamente,
criar uma sociedade alternativa,
acabar com a guerra e fazer amor
livremente. Não era um mau programa. A droga era encarada menos como um vício e mais como
uma experiência. Ela ampliaria as
possibilidades cognitivas das pessoas e estimularia um processo de
libertação mental das convenções
caretas e repressivas do sistema.
A substância da hora era o LSD
(Lysergic Acid Diethylamide),
que vinha sendo experimentada
por psiquiatras em tratamento de
distúrbios mentais, até que o psicólogo norte-americano Thimoty
Leary, doutor de Harvard, a retirou do âmbito médico, acreditando ter descoberto a chave para
abrir a consciência humana.
Leary, um sujeito fora do comum, organizava grupos e servia
um coquetel de LSD com religiosidade oriental. Em 1966, a droga
foi proibida, e Leary, preso.
Ele se tornou uma lenda viva, e a
"trip" de ácido, uma espécie de
passaporte para ingressar numa
nova dimensão, numa nova tribo,
numa nova maneira de estar no
mundo. Heróis culturais da juventude mundial, dos Beatles a
Jimmi Hendrix, experimentaram
a viagem lisérgica.
No Brasil, havia uma dramática
particularidade: vivia-se sob uma
ditadura militar, que entraria em
sua fase mais sombria a partir de
dezembro de 1968. Intelectuais,
políticos e artistas eram perseguidos e presos. Muitos se viam obrigados a deixar o país. Uma das palavras mais pronunciadas na época -e que define bastante bem a
atmosfera- era "sufoco".
Todos estavam no sufoco, mas
nem todos da mesma forma. A
maior parte da juventude universitária interessada em política e
cultura tendia a assumir posições
de esquerda, no sentido mais estrito da palavra. A vanguarda dessa turma era formada por militantes comunistas, marxistas-leninistas, trotskistas etc. Muitos decidiram pegar em armas. Era gente corajosa e de fortes convicções,
mas frequentemente enquadrada
do ponto de vista do comportamento e da moral. Afinal, a classe
operária não iria chegar ao poder
liderada por "desbundados".
Essa é outra palavra-chave daquele período: "desbundado" era
o modo como a esquerda tratava
a turma da contracultura, o pessoal que viajava, ouvia Janis Joplin, gostava da "beat generation", fazia filmes em Super-8,
não cortava os cabelos e em vez de
dramatizar em seus trabalhos a
luta de classes preferia perder
tempo com temas "alienados",
subjetivos ou delirantes.
A conversa era assim: dois amigos de esquerda se encontravam.
Um perguntava: "E fulano, tem
notícias dele?". E o outro: "Fulano
desbundou. Foi morar num sítio
com uma comunidade, fica ouvindo rock e está traduzindo o Livro Tibetano dos Mortos".
Claro que esquerda e desbunde
não deixavam de ser duas faces da
mesma moeda -e muitos chegaram a encarná-las simultaneamente, como Glauber Rocha (como se pode conferir em "Glauber
o Filme, Labirinto do Brasil", nos
cinemas).
A contracultura foi um episódio
no qual se cruzaram diferentes
trajetórias e interesses, com desdobramentos que chegaram à década de 80, em parte catapultados
pela rebeldia punk de 78. No Brasil, por ela passaram nomes como
Waly Salomão, Hélio Oiticica e
Rogério Sganzerla -e dela derivaram diversas produções alternativas, da poesia marginal a grupos de rock e teatro. José Mojica
Marins, o Zé do Caixão, era visto
como uma espécie de herói precursor do underground. E não se
pode esquecer de José Simão
-que poderia contar essa história melhor do que eu, ele que dava
seus rolês ao lado de Gal Costa pelas "dunas do barato", a faixa de
areia mais desbundada da Ipanema dos anos 70.
Texto Anterior: Memórias do subterrâneo Próximo Texto: Cinema: Hollywood busca a fórmula da "Paixão" Índice
|