São Paulo, segunda-feira, 21 de março de 2005

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NELSON ASCHER

O paradigma e o medo

O termo "paradigma" é habitualmente definido como um exemplo que serve de modelo ou como um padrão. Numa acepção um pouco distinta, ele remete a uma série preestabelecida de procedimentos, um roteiro ou caminho, uma maneira dada de fazer certas coisas.
É nesse sentido que o professor Thomas Kuhn (1922-96), do MIT (Massachusetts Institute of Technology), usou a expressão em um dos livros mais influentes do século 20: "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962). Para ele, a evolução da ciência não se resume num progresso linear, cumulativo de descobertas, mas sim em épocas de calmaria interrompidas por saltos ou alterações profundas, quando o que ele chama de paradigma dominante é subvertido por fatos inesperados ou teorias inusitadas.
Se a comunidade científica se dedica honestamente à resolução dos problemas que lhe são postos, nem por isso ela o faz com a mente totalmente aberta ou em branco. Pelo contrário, ela opera a partir de pressuposições, teorias, rotinas e métodos herdados de seus predecessores. Daí que novos problemas -problemas tão distintos ou surpreendentes que a obrigam a questionar e/ou alterar seu modo de trabalhar e pensar- demorem tanto para encontrar uma solução adequada.
A tese do próprio Thomas Kuhn se converteu num paradigma da evolução do conhecimento e, como não poderia deixar de ser, foi discutida e combatida. Se ela ainda se aplica, ou não, ao campo específico para o qual foi formulada, é algo melhor deixar os especialistas decidirem.
Seu conceito é, no entanto, utilíssimo para, em outras áreas, explicar como as visões de mundo se formam, se enraízam e por que costuma ser tão penoso mudá-las. E, caso elas se refiram ao mundo realmente existente das relações políticas, econômicas e sociais, seu arraigamento, mais que pelo mero hábito, pode ser ocasionado por paixões profundas, às quais nem sempre é fácil se contrapor desapaixonadamente.
Talvez isso explique o interesse com o qual pessoas ao redor do planeta acompanham eventos que, à primeira vista, não exercerão nenhuma influência sobre sua vida privada ou, caso a exerçam, o farão de formas imprevisíveis. As recentes campanhas do Afeganistão e do Iraque, independentemente de seus desfechos, não abalariam, nem de fato abalaram, o cotidiano do parisiense médio ou do londrino, de um paulista ou de um carioca. Mesmo assim, nas regiões mais afastadas dessas conflagrações, gente que provavelmente nunca antes tinha ouvido nomes como Tikrit ou Mosul, que titubearia ao ter de explicitar o que diferencia os muçulmanos sunitas dos xiitas, ou árabes de curdos, gente que nunca tinha parado para pensar sobre o que vinha acontecendo seja na Ásia Central, seja na Mesopotâmia, sentiu-se motivada o suficiente para pintar cartazes e desfilar com eles ao longo de ruas e avenidas.
Sucede que os eventos mencionados, além de outros tantos que marcaram o início do milênio, têm obrigado tanto as lideranças que decidem como as massas mais ou menos passivas a pôr em questão o conjunto de idéias e pressupostos ao qual recorriam para compreender o que liam nos jornais ou viam nos noticiários. O paradigma dominante vinha se preparando há muito tempo, mas adquiriu seus traços determinantes após a Segunda Guerra e se consolidou nos anos 60, período em que se formaram as cabeças que orientam agora as demais.
Alguns de seus pilares centrais são os seguintes: a riqueza e a pobreza de indivíduos ou nações estão intimamente vinculadas, uma sendo a causa da outra; os males do mundo advém de egoístas que acumulam riquezas, algo que se faz necessariamente por meio da exploração que reduz outros à pobreza; o Ocidente descobriu uma receita infalível para "roubar" os bens que pertencem a toda a humanidade (potencialmente opulenta, não fosse tal exploração), instaurando um desequilíbrio injusto e violento que precisa ser combatido. Os homens são todos iguais, e não somente em termos de sua biologia básica ou de seus direitos jurídicos abstratos: a capacidade de cada qual não é superior ou inferior à do próximo e, afinal, todos os grupos se equivalem, sem que a história ou a cultura de cada qual (para não falar da geografia ou do acaso cego) pesem sobre seu estado atual. Em caso de conflito, os culpados são sempre os mais ricos e convém, portanto, optar preferencialmente pelos pobres.
Esse paradigma consiste numa versão ampliada daquele que, na mesma época, prevaleceu quando se estudava o indivíduo, ou seja, o que Steven Pinker chamou de a "lousa em branco" (white slate). De acordo com essa noção, as pessoas nascem idênticas e despidas de traços diferenciais, traços esses que a sociedade lhes aplicará. Supõe-se hoje que, ao nascer, qualquer ser humano já venha equipado com vantagens e desvantagens resultantes de um extensa história anterior codificada em seus genes. A ignorância voluntária desse passado genético equivale, na abordagem dos grupos, nações, civilizações, à negação de suas trajetórias particulares, bem como das conseqüências de suas escolhas, conscientes ou inconscientes, tomadas ontem ou milênios atrás.
Seria ingênuo esperar que um paradigma aceito há meio século por duas ou três gerações consecutivas começasse a ruir -e tão rápido- sem desencadear uma reação de pânico defensivo, inclusive entre os que só podem se beneficiar com sua abolição. Embora ninguém tenha começado a escorregar sobre a Terra, como se fosse um tobogã, tão logo se constatou que esta não era plana, ainda assim o medo se apossou de muitos entre os que não conseguiam entender como era possível habitar uma esfera que girava sem parar.


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