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NELSON ASCHER
O paradigma e o medo
O termo "paradigma" é habitualmente definido como
um exemplo que serve de modelo
ou como um padrão. Numa acepção um pouco distinta, ele remete
a uma série preestabelecida de
procedimentos, um roteiro ou caminho, uma maneira dada de fazer certas coisas.
É nesse sentido que o professor
Thomas Kuhn (1922-96), do MIT
(Massachusetts Institute of Technology), usou a expressão em um
dos livros mais influentes do século 20: "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962). Para ele,
a evolução da ciência não se resume num progresso linear, cumulativo de descobertas, mas sim em
épocas de calmaria interrompidas por saltos ou alterações profundas, quando o que ele chama
de paradigma dominante é subvertido por fatos inesperados ou
teorias inusitadas.
Se a comunidade científica se
dedica honestamente à resolução
dos problemas que lhe são postos,
nem por isso ela o faz com a mente totalmente aberta ou em branco. Pelo contrário, ela opera a
partir de pressuposições, teorias,
rotinas e métodos herdados de
seus predecessores. Daí que novos
problemas -problemas tão distintos ou surpreendentes que a
obrigam a questionar e/ou alterar
seu modo de trabalhar e pensar- demorem tanto para encontrar uma solução adequada.
A tese do próprio Thomas Kuhn
se converteu num paradigma da
evolução do conhecimento e, como não poderia deixar de ser, foi
discutida e combatida. Se ela ainda se aplica, ou não, ao campo específico para o qual foi formulada, é algo melhor deixar os especialistas decidirem.
Seu conceito é, no entanto, utilíssimo para, em outras áreas, explicar como as visões de mundo se
formam, se enraízam e por que
costuma ser tão penoso mudá-las.
E, caso elas se refiram ao mundo
realmente existente das relações
políticas, econômicas e sociais,
seu arraigamento, mais que pelo
mero hábito, pode ser ocasionado
por paixões profundas, às quais
nem sempre é fácil se contrapor
desapaixonadamente.
Talvez isso explique o interesse
com o qual pessoas ao redor do
planeta acompanham eventos
que, à primeira vista, não exercerão nenhuma influência sobre
sua vida privada ou, caso a exerçam, o farão de formas imprevisíveis. As recentes campanhas do
Afeganistão e do Iraque, independentemente de seus desfechos,
não abalariam, nem de fato abalaram, o cotidiano do parisiense
médio ou do londrino, de um
paulista ou de um carioca. Mesmo assim, nas regiões mais afastadas dessas conflagrações, gente
que provavelmente nunca antes
tinha ouvido nomes como Tikrit
ou Mosul, que titubearia ao ter de
explicitar o que diferencia os muçulmanos sunitas dos xiitas, ou
árabes de curdos, gente que nunca tinha parado para pensar sobre o que vinha acontecendo seja
na Ásia Central, seja na Mesopotâmia, sentiu-se motivada o suficiente para pintar cartazes e desfilar com eles ao longo de ruas e
avenidas.
Sucede que os eventos mencionados, além de outros tantos que
marcaram o início do milênio,
têm obrigado tanto as lideranças
que decidem como as massas
mais ou menos passivas a pôr em
questão o conjunto de idéias e
pressupostos ao qual recorriam
para compreender o que liam nos
jornais ou viam nos noticiários. O
paradigma dominante vinha se
preparando há muito tempo, mas
adquiriu seus traços determinantes após a Segunda Guerra e se
consolidou nos anos 60, período
em que se formaram as cabeças
que orientam agora as demais.
Alguns de seus pilares centrais
são os seguintes: a riqueza e a pobreza de indivíduos ou nações estão intimamente vinculadas,
uma sendo a causa da outra; os
males do mundo advém de egoístas que acumulam riquezas, algo
que se faz necessariamente por
meio da exploração que reduz
outros à pobreza; o Ocidente descobriu uma receita infalível para
"roubar" os bens que pertencem a
toda a humanidade (potencialmente opulenta, não fosse tal exploração), instaurando um desequilíbrio injusto e violento que
precisa ser combatido. Os homens
são todos iguais, e não somente
em termos de sua biologia básica
ou de seus direitos jurídicos abstratos: a capacidade de cada qual
não é superior ou inferior à do
próximo e, afinal, todos os grupos
se equivalem, sem que a história
ou a cultura de cada qual (para
não falar da geografia ou do acaso cego) pesem sobre seu estado
atual. Em caso de conflito, os culpados são sempre os mais ricos e
convém, portanto, optar preferencialmente pelos pobres.
Esse paradigma consiste numa
versão ampliada daquele que, na
mesma época, prevaleceu quando
se estudava o indivíduo, ou seja, o
que Steven Pinker chamou de a
"lousa em branco" (white slate).
De acordo com essa noção, as pessoas nascem idênticas e despidas
de traços diferenciais, traços esses
que a sociedade lhes aplicará. Supõe-se hoje que, ao nascer, qualquer ser humano já venha equipado com vantagens e desvantagens resultantes de um extensa
história anterior codificada em
seus genes. A ignorância voluntária desse passado genético equivale, na abordagem dos grupos,
nações, civilizações, à negação de
suas trajetórias particulares, bem
como das conseqüências de suas
escolhas, conscientes ou inconscientes, tomadas ontem ou milênios atrás.
Seria ingênuo esperar que um
paradigma aceito há meio século
por duas ou três gerações consecutivas começasse a ruir -e tão
rápido- sem desencadear uma
reação de pânico defensivo, inclusive entre os que só podem se beneficiar com sua abolição. Embora ninguém tenha começado a escorregar sobre a Terra, como se
fosse um tobogã, tão logo se constatou que esta não era plana, ainda assim o medo se apossou de
muitos entre os que não conseguiam entender como era possível
habitar uma esfera que girava
sem parar.
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