São Paulo, quarta-feira, 21 de março de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O diabo veste Armani

Tudo começou com uma campanha de grife em que cinco homens exercem violência sobre uma mulher

ACONTECEU NA Espanha: o país que se apresenta ao mundo como exemplo de progressismo sexual e moral (vocês podem mudar de sexo no registro civil sem passar por cirurgia respectiva) anda vendo corrupção sexual e moral em toda a parte.
Tudo começou com uma campanha publicitária da grife Dolce & Gabbana em que, alegadamente, cinco homens exercem violência sexual sobre uma mulher indefesa. Melhor: um exerce, os outros quatro assistem. A Anistia Internacional e organizações ligadas à defesa da mulher não gostaram do abuso, e a Dolce & Gabbana recuou. Eu vi o cartaz e, tirando a estupidez natural de qualquer campanha publicitária, confesso que "violência sexual" era a última coisa que me passaria pela cabeça. Os cinco rapazes tinham um ar tão completamente gay que só por piada o cidadão incauto acreditaria em um estupro coletivo. Uma festa entre amigos, talvez; violação em grupo, dificilmente.
Mas a loucura continuou nos dias seguintes e novamente com o mundo da moda no cartaz. Desta vez, a Armani Junior levou o juiz de menores da comunidade de Madri, Arturo Canalda, a denunciar o arranjo por "incitar o turismo sexual". Na imagem, temos duas meninas de origem asiática, uma de jeans e camisa branca, a outra com calções e top. Eu não sei por onde tem andado o juiz de menores da comunidade de Madri. No meu mundo, duas crianças de oito anos continuam a ser duas crianças de oito anos. Mas também acrescento que não posso falar do meu mundo. Eu só posso falar do mundo do fundamentalista dos costumes, que acredita que a corrupção está em toda a parte.
Em 1997, Bruce Bawer procurou entender esse mundo com um livro notável ("Stealing Jesus: How Fundamentalism Betrays Christianity"), viajando ao coração do radicalismo religioso norte-americano.
O livro de Bawer é interessante não apenas pelas interpretações do autor mas sobretudo pelas palavras dos próprios fundamentalistas, que dão ao relato um colorido arrepiante. Um deles, em declaração pungente, confessa desde logo que o fundamentalista é aquele que abandona toda a ambigüidade da vida moral, as zonas cinzentas, a complexidade inevitável dos valores, optando antes pela simplicidade da luz ou das trevas.
E, em definição primorosa, acrescenta: o fundamentalista não é apenas aquele que vê Deus em toda a parte. Um fundamentalista também vê o demônio em toda a parte. E ele sabe que, em uma luta sem tréguas entre o bem e o mal, o demônio pode estar onde menos se espera. Dentro de casa. Fora de casa. Atrás de um arbusto. Na televisão, no cinema, na literatura. Em um cartaz de publicidade.
Na Espanha, o diabo vestiu Dolce & Gabbana. E quando o diabo foi apanhado e exorcizado na fogueira fundamentalista, o diabo encarnou em duas meninas de oito anos. Felizmente para os espanhóis, Arturo Canalda, juiz de menores de Madri, estava atento ao inimigo e expulsou o bicho da cidade. Até prova em contrário, o diabo só voltará a atacar na próxima coleção outono/inverno.


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