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ANÁLISE
Os bons selvagens mirins
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Garotas podem ser más? Embora a visão romantizada da infância sugira a existência de
uma pureza primordial, crianças, como qualquer outro animal social, são capazes tanto de
atitudes do mais profundo
egoísmo -de crueldade mesmo- quanto de gestos altruístas. É um clássico caso de copo
meio cheio ou meio vazio.
E a pergunta interessante é:
por que tanta gente deixa seletivamente de ver os fatos que
não lhe convêm para sustentar
o mito da infância angelical?
Parte da resposta está na biologia. Bebês e crianças comovem e mobilizam nossos instintos de cuidadores. Estes serezinhos foram "desenhados" com
características que exploram
nossos vieses sensórios. Tais
traços são há décadas conhecidos de artistas como Walt Disney. O que torna Mickey Mouse
fofinho e não repulsivo como a
maioria dos murídeos? Como
observou o etólogo Marc Hauser, "a cabeça muito maior do
que o corpo e os olhos grandes
em relação ao rosto (...) são como doces visuais, irresistíveis
para nossos olhos".
E, se essa é a base biológica
do "amor às crianças", sobre ela
passaram a operar poderosos
fatores culturais, que reforçaram essa predisposição natural
até torná-la uma ideologia.
Enquanto bebês nasciam aos
borbotões e morriam em proporções parecidas -o que ocorreu durante 99,9% da história-
, víamos o óbito de filhos como
algo, se não natural, ao menos
esperado. Evitávamos investir
tudo num único rebento.
Com o surgimento da família
burguesa, a partir do século 16,
as coisas começaram a mudar.
Ter um bebê e vê-lo chegar à
idade adulta deixou de ser uma
aposta temerária. Estava aberto o caminho para que o amor
paterno pudesse prosperar.
Foi nesse contexto que surgiram, no século 18, pedagogos
como Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), que criou um novo
conceito de infância. Jovens
não deveriam ser apenas ensinados, mas educados, respeitando-se as especificidades de
seu desenvolvimento natural.
O problema é que essa ideia
bastante plausível de Rousseau
veio misturada com outras,
menos razoáveis, como a balela
de que o homem é originalmente bom, mas a sociedade o corrompe. Não foi preciso muito
para que crianças virassem
bons selvagens mirins, a encarnação da bondade primeva.
O fato de Rousseau ter se tornado o filósofo mais influente
da história, especialmente no
pensamento de esquerda, só
aumentou o vigor do mito e o
tamanho do estrago provocado.
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