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ANÁLISE
Os novos guardiões das escrituras
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Livros e trevas brigam há milhares de anos. O espetáculo
da queima de manuscritos preciosos em Bagdá, berço da civilização, é sintomático de lógica
simbólica que vale aqui como lá.
No Brasil, o contraste entre o saber iluminado encarnado nos livros e a barbárie inculta sempre
foi extremado. A edição de livros
era proibida na Colônia. A primeira biblioteca chegou pelas
mãos da coroa portuguesa refugiada nos trópicos.
Durante séculos, o controle do
aprendizado da linguagem escrita, acessível a uma minoria constrangedora, limitou a poucos o
manuseio do que foi se tornando
um ícone de poder: o livro.
Os pobres carregam o estigma
da ignorância. O analfabetismo
estrutural nos segmentos menos
favorecidos de uma sociedade desigual fez com que livros e favelas
aparecessem como elementos excludentes em uma escala de valores que privilegia a riqueza supostamente associada à norma culta.
Essa noção de incompatibilidade entre pobreza e saber, dada como natural há séculos no Brasil,
permaneceu relativamente invisível. Mas manifestações recentes
de apropriação da sagrada linguagem escrita acenam, afinal, com a
ampliação do domínio da linguagem escrita.
A Biblioteca de Educação Infantil de Paraisópolis (Becei) constitui um caso exemplar de descoberta do livro e, em torno dele, de
outros veículos de produção e veiculação de conhecimento, como o
vídeo e a internet. Fundada em
1996, por Claudemir Cabral, então com 15 anos, a Becei cresceu.
O contraste entre as duas primeiras estantes de livros e o barraco de madeira que as abrigava
no seio da segunda maior favela
da cidade se mostrou poderoso. A
imagem dos dois extremos justificou intensa cobertura da mídia.
A difusão da experiência gerou
solidariedade de milhares de pessoas, empresas e organizações,
que doaram livros, móveis, computadores, uma sede de alvenaria.
As duas estantes de livros se
transformaram em um acervo de
11 mil volumes, disponíveis gratuitamente para 900 associados e
2.200 frequentadores. A sala apertada de leitura está sempre cheia
de crianças e adultos que vêm fazer pesquisa escolar, retirar livros
ou digitar um currículo. Há acesso à internet.
Dentro de alguns dias a biblioteca de Paraisópolis estará iniciando a catalogação digital de seu
acervo, que estará portanto, acessível pela internet.
A disputa pelo controle dos
meios de representação e produção de conhecimento se generalizou. Nas novas configurações da
cultura contemporânea, são "outros", muitas vezes tidos como
bárbaros, que aparecem na TV
como guardiões das escrituras.
Esther Hamburger é antropóloga e
professora da ECA-USP
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