UOL


São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANÁLISE

Os novos guardiões das escrituras

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Livros e trevas brigam há milhares de anos. O espetáculo da queima de manuscritos preciosos em Bagdá, berço da civilização, é sintomático de lógica simbólica que vale aqui como lá.
No Brasil, o contraste entre o saber iluminado encarnado nos livros e a barbárie inculta sempre foi extremado. A edição de livros era proibida na Colônia. A primeira biblioteca chegou pelas mãos da coroa portuguesa refugiada nos trópicos.
Durante séculos, o controle do aprendizado da linguagem escrita, acessível a uma minoria constrangedora, limitou a poucos o manuseio do que foi se tornando um ícone de poder: o livro.
Os pobres carregam o estigma da ignorância. O analfabetismo estrutural nos segmentos menos favorecidos de uma sociedade desigual fez com que livros e favelas aparecessem como elementos excludentes em uma escala de valores que privilegia a riqueza supostamente associada à norma culta.
Essa noção de incompatibilidade entre pobreza e saber, dada como natural há séculos no Brasil, permaneceu relativamente invisível. Mas manifestações recentes de apropriação da sagrada linguagem escrita acenam, afinal, com a ampliação do domínio da linguagem escrita.
A Biblioteca de Educação Infantil de Paraisópolis (Becei) constitui um caso exemplar de descoberta do livro e, em torno dele, de outros veículos de produção e veiculação de conhecimento, como o vídeo e a internet. Fundada em 1996, por Claudemir Cabral, então com 15 anos, a Becei cresceu.
O contraste entre as duas primeiras estantes de livros e o barraco de madeira que as abrigava no seio da segunda maior favela da cidade se mostrou poderoso. A imagem dos dois extremos justificou intensa cobertura da mídia.
A difusão da experiência gerou solidariedade de milhares de pessoas, empresas e organizações, que doaram livros, móveis, computadores, uma sede de alvenaria.
As duas estantes de livros se transformaram em um acervo de 11 mil volumes, disponíveis gratuitamente para 900 associados e 2.200 frequentadores. A sala apertada de leitura está sempre cheia de crianças e adultos que vêm fazer pesquisa escolar, retirar livros ou digitar um currículo. Há acesso à internet.
Dentro de alguns dias a biblioteca de Paraisópolis estará iniciando a catalogação digital de seu acervo, que estará portanto, acessível pela internet.
A disputa pelo controle dos meios de representação e produção de conhecimento se generalizou. Nas novas configurações da cultura contemporânea, são "outros", muitas vezes tidos como bárbaros, que aparecem na TV como guardiões das escrituras.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Livro/dança: Tecnologia redefine o corpo em cena
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.