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NELSON ASCHER
O fim do começo
A guerra que, segundo as
preferências político-ideológicas do freguês, foi chamada de
"do", "no", "contra", "pelo" ou
"em prol do" Iraque acabou, em
três brevíssimas semanas, com
uma acachapante vitória norte-americana, australiana e britânica. As baixas da coalizão ficaram
abaixo de duas centenas, cerca de
metade das quais devida ao "fogo
amigo" ou a acidentes de circulação. Pensando bem, se em qualquer cidade do planeta selecionássemos a esmo 300 mil adolescentes e jovens de sexo masculino,
distribuíssemos entre eles tanto
armas e munição a granel como
milhares de carros esporte, dizendo-lhes "divirtam-se", a mortandade em menos tempo seria
maior.
Não só o resultado da campanha mas o modo como foi alcançado constituem a primeira resposta articulada às indagações levantadas pelo evento que abriu
um novo ciclo histórico, o 11 de setembro de 2001. O pessoal que então comemorou nas ruas de Ramalá está hoje com a cara no
chão, o que não é um mau começo. Depois de espreguiçar-se no
Afeganistão, a mensagem do Ocidente anglo-saxão, ou anglosfera,
ao mundo árabe-islâmico é a seguinte : "Como vocês deixaram
sua casa virar um ninho de terrorratazanas e baraterroristas
que passaram a infestar nosso
prédio, agora vamos visitá-los para ajudar a dedetizá-la e desratizá-la".
Uma vez que há poucos argumentos tão eloquentes quanto
um blindado estrangeiro ajudando, em horário nobre, a população local a demolir a estátua de
um ditador deposto ou (e este é o
meu palpite) morto por quatro
bombas "demolidoras de bunkers" entregues em domicílio,
mais rápido que qualquer pizza
(12 minutos após serem encomendadas), as mudanças de tom e de
atitude ao redor do planeta já estão se tornando difíceis de contar.
A Coréia do Norte, pressionada
pela China, aceitou, como os EUA
desejavam, negociar seu probleminha nuclear num contexto
multilateral. O ex-presidente iraniano Rafsanjani, que há pouco
se declarava disposto a incinerar
Israel logo seu país dispusesse da
bomba, anda sugerindo o restabelecimento de relações formais
com o grande Satã. A Turquia,
que, aparentemente sob pressão
franco-germânica, impedira as
tropas americanas de passar por
seu território, vem pedindo ao pequeno Satã israelense que a auxilie a reaproximar-se do velho
amigo.
Enquanto isso, Ariel Sharon,
que, ao contrário do que se pensa,
filia-se de fato ao sionismo pragmático de um Ben Gurion, anunciou que, tendo em vista as transformações radicais da região,
aceitaria o estabelecimento de
um Estado palestino. Tony Blair,
que a velha Europa descartara
como um líder desligado de sua
base e sem futuro, tornou-se alvo
de bajulações diplomáticas. Donald Rumsfeld é agora, com toda
a justiça, considerado o membro
mais brilhante da administração
Bush. E o lúgubre Kofi Annan,
que sabe de onde (e para onde)
sopra o vento, preferiu, com a intenção de salvar seu clube de burocratas e cleptocratas, não comparecer à recente festa de despedida do "campo da paz" (Alemanha, França, Rússia) em São Petersburgo.
Finalmente, a Bélgica, que, arrogando-se uma absurda jurisdição universal para julgar maldefinidos "crimes contra a humanidade" perpetrados onde quer que
fosse, estava movendo processos
contra Sharon, Colin Powell e outros, deixou, por meio de umas alteraçõezinhas legais convenientes, essas pretensões de lado. A Polônia, que está ingressando na
União Européia, encomendou,
por U$ 3,5 bilhões, 48 caças F-16
americanos em vez de seus equivalentes franceses. E, diante de
um boicote crescente nos EUA aos
produtos de seu país, além de críticas à sua atuação, que vão dos
luminares de seu partido às lideranças empresariais e do "Le Figaro" ao "Libération ", Jacques
Chirac telefonou, mas não antes
de seus diplomatas pedirem à Casa Branca que o atendesse, a
George Bush.
As implicações estratégicas, políticas, econômicas, sociais etc. de
uma presença militar americana,
que não será de modo algum curta, no coração da Arábia são tantas e seus desdobramentos e ramificações são tão complexos que todos os que se predispuserem a
pontificar sobre o futuro, inclusive o mais imediato, vão se revelar
mais redondamente equivocados
do que aqueles que, ainda em
março, vaticinavam que, em face
da indômita resistência local, os
invasores se atolariam (ou, quem
sabe, se "aiatolariam") num novo
Vietnã, que haveria centenas de
milhares de mortos de ambos os
lados, que a "rua árabe" em chamas poria fogo no planeta inteiro...
Embora tudo ainda possa terminar muito mal (mas teria terminado mal de qualquer modo se
algo não fosse feito), o jogo está
numa nova fase. Quantas são as
fases não se sabe e, assim, melhor
é repetir o que Winston Churchill
disse, em novembro de 42, depois
da vitória britânica na batalha de
El Alamein : "Isto não é o fim.
Nem sequer o começo do fim. Mas
talvez seja o fim do começo".
Mea-culpa: Tudo, inclusive não
se interessar por esportes competitivos, tem seu preço. O título de
minha coluna da semana passada, "Dejà Vu de Novo", era uma
frase que ouvi atribuírem na TV a
Yogi Bear (Zé Colméia). Bom, ouvi errado. O leitor José Colucci,
autor de um belo artigo sobre problemas do fotojornalismo, escreveu-me o seguinte: "A expressão
"it's déjà vu all over again" é de
Yogi Berra, famoso jogador americano de beisebol. O nome do urso do desenho animado, que em
português virou "Zé Colméia", é
Yogi Bear -uma homenagem a
Yogi Berra e suas frases memoráveis".
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