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São Paulo, segunda-feira, 21 de abril de 2003

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NELSON ASCHER

O fim do começo

A guerra que, segundo as preferências político-ideológicas do freguês, foi chamada de "do", "no", "contra", "pelo" ou "em prol do" Iraque acabou, em três brevíssimas semanas, com uma acachapante vitória norte-americana, australiana e britânica. As baixas da coalizão ficaram abaixo de duas centenas, cerca de metade das quais devida ao "fogo amigo" ou a acidentes de circulação. Pensando bem, se em qualquer cidade do planeta selecionássemos a esmo 300 mil adolescentes e jovens de sexo masculino, distribuíssemos entre eles tanto armas e munição a granel como milhares de carros esporte, dizendo-lhes "divirtam-se", a mortandade em menos tempo seria maior.
Não só o resultado da campanha mas o modo como foi alcançado constituem a primeira resposta articulada às indagações levantadas pelo evento que abriu um novo ciclo histórico, o 11 de setembro de 2001. O pessoal que então comemorou nas ruas de Ramalá está hoje com a cara no chão, o que não é um mau começo. Depois de espreguiçar-se no Afeganistão, a mensagem do Ocidente anglo-saxão, ou anglosfera, ao mundo árabe-islâmico é a seguinte : "Como vocês deixaram sua casa virar um ninho de terrorratazanas e baraterroristas que passaram a infestar nosso prédio, agora vamos visitá-los para ajudar a dedetizá-la e desratizá-la".
Uma vez que há poucos argumentos tão eloquentes quanto um blindado estrangeiro ajudando, em horário nobre, a população local a demolir a estátua de um ditador deposto ou (e este é o meu palpite) morto por quatro bombas "demolidoras de bunkers" entregues em domicílio, mais rápido que qualquer pizza (12 minutos após serem encomendadas), as mudanças de tom e de atitude ao redor do planeta já estão se tornando difíceis de contar.
A Coréia do Norte, pressionada pela China, aceitou, como os EUA desejavam, negociar seu probleminha nuclear num contexto multilateral. O ex-presidente iraniano Rafsanjani, que há pouco se declarava disposto a incinerar Israel logo seu país dispusesse da bomba, anda sugerindo o restabelecimento de relações formais com o grande Satã. A Turquia, que, aparentemente sob pressão franco-germânica, impedira as tropas americanas de passar por seu território, vem pedindo ao pequeno Satã israelense que a auxilie a reaproximar-se do velho amigo.
Enquanto isso, Ariel Sharon, que, ao contrário do que se pensa, filia-se de fato ao sionismo pragmático de um Ben Gurion, anunciou que, tendo em vista as transformações radicais da região, aceitaria o estabelecimento de um Estado palestino. Tony Blair, que a velha Europa descartara como um líder desligado de sua base e sem futuro, tornou-se alvo de bajulações diplomáticas. Donald Rumsfeld é agora, com toda a justiça, considerado o membro mais brilhante da administração Bush. E o lúgubre Kofi Annan, que sabe de onde (e para onde) sopra o vento, preferiu, com a intenção de salvar seu clube de burocratas e cleptocratas, não comparecer à recente festa de despedida do "campo da paz" (Alemanha, França, Rússia) em São Petersburgo.
Finalmente, a Bélgica, que, arrogando-se uma absurda jurisdição universal para julgar maldefinidos "crimes contra a humanidade" perpetrados onde quer que fosse, estava movendo processos contra Sharon, Colin Powell e outros, deixou, por meio de umas alteraçõezinhas legais convenientes, essas pretensões de lado. A Polônia, que está ingressando na União Européia, encomendou, por U$ 3,5 bilhões, 48 caças F-16 americanos em vez de seus equivalentes franceses. E, diante de um boicote crescente nos EUA aos produtos de seu país, além de críticas à sua atuação, que vão dos luminares de seu partido às lideranças empresariais e do "Le Figaro" ao "Libération ", Jacques Chirac telefonou, mas não antes de seus diplomatas pedirem à Casa Branca que o atendesse, a George Bush.
As implicações estratégicas, políticas, econômicas, sociais etc. de uma presença militar americana, que não será de modo algum curta, no coração da Arábia são tantas e seus desdobramentos e ramificações são tão complexos que todos os que se predispuserem a pontificar sobre o futuro, inclusive o mais imediato, vão se revelar mais redondamente equivocados do que aqueles que, ainda em março, vaticinavam que, em face da indômita resistência local, os invasores se atolariam (ou, quem sabe, se "aiatolariam") num novo Vietnã, que haveria centenas de milhares de mortos de ambos os lados, que a "rua árabe" em chamas poria fogo no planeta inteiro...
Embora tudo ainda possa terminar muito mal (mas teria terminado mal de qualquer modo se algo não fosse feito), o jogo está numa nova fase. Quantas são as fases não se sabe e, assim, melhor é repetir o que Winston Churchill disse, em novembro de 42, depois da vitória britânica na batalha de El Alamein : "Isto não é o fim. Nem sequer o começo do fim. Mas talvez seja o fim do começo".
 
Mea-culpa: Tudo, inclusive não se interessar por esportes competitivos, tem seu preço. O título de minha coluna da semana passada, "Dejà Vu de Novo", era uma frase que ouvi atribuírem na TV a Yogi Bear (Zé Colméia). Bom, ouvi errado. O leitor José Colucci, autor de um belo artigo sobre problemas do fotojornalismo, escreveu-me o seguinte: "A expressão "it's déjà vu all over again" é de Yogi Berra, famoso jogador americano de beisebol. O nome do urso do desenho animado, que em português virou "Zé Colméia", é Yogi Bear -uma homenagem a Yogi Berra e suas frases memoráveis".



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