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MARCELO COELHO
Invasão e evasão
Da janela do meu apartamento, vejo alguns edifícios
do famoso "espigão da Paulista",
que ficam bem bonitos de noite,
com as luzes acesas. Um deles,
contudo, sempre me incomodou
visualmente -é daqueles esqueletos de obra pública, grande volume de concreto cinzento e vazio, que se levanta no horizonte
como uma advertência inútil
contra o desperdício do dinheiro
do contribuinte.
Aliás, só o fato de sugerir o lugar-comum que acabo de escrever
já seria argumento suficiente para implodir esse prédio, que estava, se não me engano, projetado
para ser um instituto em prol da
saúde da mulher.
Vão retomar a obra. Mas, enquanto isso não acontece, o artista plástico Eduardo Srur montou
ali uma espécie de instalação vertical, a que chamou de "Acampamento dos Anjos". São umas 20
barracas de camping de várias cores, iluminadas por dentro com
luz fria, saindo das sacadas do
prédio; parecem lanternas japonesas ou talvez uma decoração de
Natal. Só que uma decoração de
Natal seria muito mais carregada
e em pisca-pisca.
Assimétricas e esparsas, as barracas ocupam o prédio com muita delicadeza e, mais importante
do que isso, sem motivo -surgiram do nada, de repente, e se de
noite, de longe, como as vejo do
meu apartamento, têm algo de
infantil ou de "naïf", dão uma espécie de susto quando a gente as
vê de perto.
Quem sai das imediações do estádio do Pacaembu e se encaminha em direção à avenida Paulista é forçado a subir um ladeirão,
quase sempre congestionado, que
se chama rua Major Natanael. É
uma rua larga, entre duas espécies de abismo: à esquerda, a boca
de um túnel, do qual saem carros
em contramão; à direita, o compridíssimo muro de um cemitério.
Algum artista do passado lembrou-se de colocar, num nicho
desse muro, a estátua de Cronos:
um velho sentado, de barba comprida, tendo em mãos uma ampulheta. Seria para nos lembrar
da Morte, da Velhice e do Tempo,
mas como há um semáforo interminável no alto dessa ladeira, a
tendência do paulistano que repara na escultura é das menos
contemplativas: buzina e bufa,
pensando no compromisso a que
chegará, mais uma vez, com
grande atraso.
Essa ladeira dá de cara com o
prédio em que foi montado o
"Acampamento dos Anjos" -e é
então que a obra de Eduardo Srur
provoca no motorista (quase não
há pedestres por ali) seu maior
impacto. Com os olhos grudados
no carro em frente, tive uma sensação de surpresa muito feliz
-uma surpresa de ordem "respiratória", por assim dizer- quando o tal edifício de repente pareceu atrair minha atenção. Levantei os olhos e vi aqueles andares,
sempre vazios, como que habitados de forma ao mesmo tempo
fantasmagórica e festiva.
Posso estar sugestionado, é claro, pelo título da obra. O próprio
movimento do olhar, para quem
chega ao fim da ladeira, é ascensional; e que os anjos acampem
num prédio logo em cima do cemitério, eis o que não deixa de ser
boa notícia. Digo isso para esconjurar uma interpretação mais sinistra desse trabalho, que seria de
mau gosto mencionar aqui.
O mais raro, de qualquer modo,
é que, a um ambiente tão congestionado como a cidade de São
Paulo, seja ainda possível acrescentar alguma coisa. Qualquer
nova intervenção, ainda que bonita, tende sempre a parecer uma
poluição a mais, um distúrbio visual indesejado. Aquelas barracas vazias, suspensas no prédio,
dão, ao contrário, uma sensação
de leveza, de gratuidade, de oxigenação para os olhos.
E se barracas de acampamento
-ainda mais nas imediações da
avenida Paulista, palco permanente de protestos- evocam a
idéia de uma invasão dos sem-terra ou dos sem-teto, há uma espécie de "gentileza" irônica, de
mesura estética, nessa ocupação
angelical.
Bem punk, ao contrário, e nada
artística, é outra intervenção urbana que eu queria comentar. Está no elevado Costa e Silva, o popular Minhocão. Passo com freqüência por esse outro tipo de
monumento ao gasto público disparatado e predatório; uma longa extensão de prédios-fantasmas, de tugúrios inabitáveis, de
redondezas degradadas, formou-se com a construção dessa via expressa -que apesar de tudo me
fascina.
Os prédios à margem do Minhocão parecem servir para pouco mais além de suportar alguns
outdoors modernosos, anúncios
de cueca e mortadela. Eis que, no
meio desses cartazes, uma verdadeira instalação foi concebida.
É um outdoor tridimensional,
divulgando um aerossol para matar baratas. Construíram uma
barata gigante, dentro de um cano de plástico transparente. Ela
sobe e desce, como se tentasse sair
pelo ralo. Ah, mas tampando o
ralo está o poderoso Baratok, ou
que nome tenha.
A barata volta às profundezas.
A coisa é tão bem feita que ocupa
o flanco inteiro de um edifício, e o
outdoor reproduz, para dar idéia
do perigo que nos espreita do fundo de uma pia ou tanque de lavar, várias camadas do subsolo
urbano: asfalto, pedrinhas, terra e
raízes de árvores são retratados
com realismo. Pobre inseto! Quer
sair, quer ver a luz, quer aflorar
do encanamento como um inconsciente freudiano ou como os
habitantes humanos que se espremem ali mesmo, debaixo do viaduto.
Não poderiam ser mais diferentes o anúncio da barata e a instalação dos anjos; mas talvez estejam dizendo a mesma coisa. O
quê, exatamente? Penso numa
palavra que combinasse as idéias
de invasão e de evasão; algo que
tivesse a ver com a vontade de fugir daqui -mas também com a
esperança de descobrirmos aqui
mesmo, de repente, que tudo se
transformou num lugar novo, diferente, iluminado e mais bonito.
Acredito que instalações
-obras de arte em geral- servem para isso. Mas sou forçado a
admitir que inseticidas também.
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