São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2004

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MARCELO COELHO

Invasão e evasão

Da janela do meu apartamento, vejo alguns edifícios do famoso "espigão da Paulista", que ficam bem bonitos de noite, com as luzes acesas. Um deles, contudo, sempre me incomodou visualmente -é daqueles esqueletos de obra pública, grande volume de concreto cinzento e vazio, que se levanta no horizonte como uma advertência inútil contra o desperdício do dinheiro do contribuinte.
Aliás, só o fato de sugerir o lugar-comum que acabo de escrever já seria argumento suficiente para implodir esse prédio, que estava, se não me engano, projetado para ser um instituto em prol da saúde da mulher.
Vão retomar a obra. Mas, enquanto isso não acontece, o artista plástico Eduardo Srur montou ali uma espécie de instalação vertical, a que chamou de "Acampamento dos Anjos". São umas 20 barracas de camping de várias cores, iluminadas por dentro com luz fria, saindo das sacadas do prédio; parecem lanternas japonesas ou talvez uma decoração de Natal. Só que uma decoração de Natal seria muito mais carregada e em pisca-pisca.
Assimétricas e esparsas, as barracas ocupam o prédio com muita delicadeza e, mais importante do que isso, sem motivo -surgiram do nada, de repente, e se de noite, de longe, como as vejo do meu apartamento, têm algo de infantil ou de "naïf", dão uma espécie de susto quando a gente as vê de perto.
Quem sai das imediações do estádio do Pacaembu e se encaminha em direção à avenida Paulista é forçado a subir um ladeirão, quase sempre congestionado, que se chama rua Major Natanael. É uma rua larga, entre duas espécies de abismo: à esquerda, a boca de um túnel, do qual saem carros em contramão; à direita, o compridíssimo muro de um cemitério. Algum artista do passado lembrou-se de colocar, num nicho desse muro, a estátua de Cronos: um velho sentado, de barba comprida, tendo em mãos uma ampulheta. Seria para nos lembrar da Morte, da Velhice e do Tempo, mas como há um semáforo interminável no alto dessa ladeira, a tendência do paulistano que repara na escultura é das menos contemplativas: buzina e bufa, pensando no compromisso a que chegará, mais uma vez, com grande atraso.
Essa ladeira dá de cara com o prédio em que foi montado o "Acampamento dos Anjos" -e é então que a obra de Eduardo Srur provoca no motorista (quase não há pedestres por ali) seu maior impacto. Com os olhos grudados no carro em frente, tive uma sensação de surpresa muito feliz -uma surpresa de ordem "respiratória", por assim dizer- quando o tal edifício de repente pareceu atrair minha atenção. Levantei os olhos e vi aqueles andares, sempre vazios, como que habitados de forma ao mesmo tempo fantasmagórica e festiva.
Posso estar sugestionado, é claro, pelo título da obra. O próprio movimento do olhar, para quem chega ao fim da ladeira, é ascensional; e que os anjos acampem num prédio logo em cima do cemitério, eis o que não deixa de ser boa notícia. Digo isso para esconjurar uma interpretação mais sinistra desse trabalho, que seria de mau gosto mencionar aqui.
O mais raro, de qualquer modo, é que, a um ambiente tão congestionado como a cidade de São Paulo, seja ainda possível acrescentar alguma coisa. Qualquer nova intervenção, ainda que bonita, tende sempre a parecer uma poluição a mais, um distúrbio visual indesejado. Aquelas barracas vazias, suspensas no prédio, dão, ao contrário, uma sensação de leveza, de gratuidade, de oxigenação para os olhos.
E se barracas de acampamento -ainda mais nas imediações da avenida Paulista, palco permanente de protestos- evocam a idéia de uma invasão dos sem-terra ou dos sem-teto, há uma espécie de "gentileza" irônica, de mesura estética, nessa ocupação angelical.
Bem punk, ao contrário, e nada artística, é outra intervenção urbana que eu queria comentar. Está no elevado Costa e Silva, o popular Minhocão. Passo com freqüência por esse outro tipo de monumento ao gasto público disparatado e predatório; uma longa extensão de prédios-fantasmas, de tugúrios inabitáveis, de redondezas degradadas, formou-se com a construção dessa via expressa -que apesar de tudo me fascina.
Os prédios à margem do Minhocão parecem servir para pouco mais além de suportar alguns outdoors modernosos, anúncios de cueca e mortadela. Eis que, no meio desses cartazes, uma verdadeira instalação foi concebida.
É um outdoor tridimensional, divulgando um aerossol para matar baratas. Construíram uma barata gigante, dentro de um cano de plástico transparente. Ela sobe e desce, como se tentasse sair pelo ralo. Ah, mas tampando o ralo está o poderoso Baratok, ou que nome tenha.
A barata volta às profundezas. A coisa é tão bem feita que ocupa o flanco inteiro de um edifício, e o outdoor reproduz, para dar idéia do perigo que nos espreita do fundo de uma pia ou tanque de lavar, várias camadas do subsolo urbano: asfalto, pedrinhas, terra e raízes de árvores são retratados com realismo. Pobre inseto! Quer sair, quer ver a luz, quer aflorar do encanamento como um inconsciente freudiano ou como os habitantes humanos que se espremem ali mesmo, debaixo do viaduto.
Não poderiam ser mais diferentes o anúncio da barata e a instalação dos anjos; mas talvez estejam dizendo a mesma coisa. O quê, exatamente? Penso numa palavra que combinasse as idéias de invasão e de evasão; algo que tivesse a ver com a vontade de fugir daqui -mas também com a esperança de descobrirmos aqui mesmo, de repente, que tudo se transformou num lugar novo, diferente, iluminado e mais bonito.
Acredito que instalações -obras de arte em geral- servem para isso. Mas sou forçado a admitir que inseticidas também.


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