São Paulo, quinta-feira, 21 de abril de 2005

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CINEMA

Kore-eda mostra história real de crianças "invisíveis" ao mundo

Diretor filma perguntas que não têm respostas

PHILIPPE PIAZZO
DO "MONDE"

Aconteceu há 16 anos, em Tóquio. A mídia tomou conhecimento do fato, e, de uma hora para outra, aquilo que ninguém havia visto passou a ser superexposto. Quatro crianças viviam num apartamento com sua mãe. Elas não tinham sido registradas, não iam à escola -eram invisíveis aos olhos da sociedade. Sua mãe, cada vez mais ausente, um dia partiu e não voltou mais. Durante algum tempo enviava dinheiro esporadicamente às crianças, mas depois não chegou mais nada. As crianças continuaram a viver da maneira que conseguiam, sem que ninguém se preocupasse. Até o dia em que uma delas morreu.
Por que essa história de família se deu dessa maneira? "Ninguém Pode Saber". Então, para fazer este filme, Hirokazu Kore-eda resolveu indagar: "Como?". Como foi possível que os dias passassem sem que os vizinhos se preocupassem? Como as crianças se organizaram para continuar clandestinas, para sobreviver?
"Quando foi descoberta a morte da garotinha, todo mundo acusou o irmão mais velho, [Akira, interpretado por Yuya Yagira, vencedor do prêmio de interpretação masculina no Festival de Cannes]. A polícia interrogou as crianças, mas elas defenderam seu irmão. Ele havia feito tudo o que podia para defender aquela célula familiar, e foi isso o que eu quis mostrar", diz o cineasta.
"Recriar seu cotidiano, filmar em detalhe o que elas devem ter vivido e sentido ao longo daqueles meses, com toda a dificuldade para se alimentar, se vestir, se manter limpas... Mostrar essas provações, mas sobretudo os momentos de felicidade. Não observar as crianças, mas estar com elas. Nesse ponto que começa a ficção. A história é verídica, mas eu usei as condições de vida reais para a busca da sensação."
"Ninguém Pode Saber" é uma metáfora de uma existência plena de promessas, mas cujo fim parece brusco demais. Como imaginar que essa vida possa terminar antes mesmo de serem dados os primeiros passos da idade adulta? Mais uma razão para aproveitar sua essência no instante presente.
Mas como? Em "Depois da Vida" (1998), mortos podem escolher, entre suas lembranças, o melhor momento de sua vida. Em seguida, tudo será feito para reconstituir com precisão esses instantes com as quais a pessoa irá adormecer para sempre.
Uma grande parte do tema mais profundo de "Ninguém Pode Saber" já estava em "Depois da Vida": o preço da vida não é determinado por ninguém além de nós. Confrontados com a angústia de perguntas que não têm resposta, "ninguém pode saber", mas cabe a cada um de nós avaliar nosso prazer em viver. Aqui, para as crianças, se a vida terminasse de uma hora para outra, ela seria interrompida no calor dos irmãos e irmãs aconchegados para dormir juntos e enfrentar as coisas juntos.
Em "Ninguém Pode Saber", o diretor procura pela primeira vez superar as tentações da abstração e do esteticismo para apreender a espessura carnal de seus personagens. O filme deve muito a seus atores, a sua graça e sua gravidade, que o diretor soube respeitar, organizando as filmagens ao longo das estações, durante um ano. Sua fragilidade, sua cumplicidade, sua evolução, nada disso é fingido. Apenas não é verídica a situação que eles representam, e que remete a uma realidade. Que revela sua verdade, aquela que também revela a notícia do jornal: a dor de crescer.


Tradução de Clara Allain

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