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CRÍTICA
Diretor olha a América por cima de seus muros
CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
No cinema, como em outras
narrativas audiovisuais, as
histórias têm três modos de ser
contadas. A primeira, de forma
escrita, no roteiro. A segunda, visual, nas filmagens. E a terceira,
estrutural, na montagem. Cada
uma dessas etapas pode transformar uma história de ponta a ponta, dando outro rumo, outro tom
e até mesmo outro significado.
Em sua estréia na direção, o ótimo ator Tommy Lee Jones dá
provas de talento também do outro lado das câmeras ao contar
uma história em que roteiro, imagens e edição foram elaborados
para acentuar seus significados.
Em "Três Enterros", Jones narra
a morte de um imigrante mexicano e a obsessão de seu chefe, um
vaqueiro texano interpretado pelo próprio ator-diretor, para lhe
dar um enterro adequado. Num
primeiro momento, o corpo de
Melquiades Estrada é simplesmente abandonado numa vala.
Depois, vai parar anônimo numa
cova rasa. Só num terceiro passo é
que se cumpre o pedido de ser enterrado em sua terra.
Para os dois primeiros enterros,
o filme ganha uma narrativa caleidoscópica, já típica do autor de
seu roteiro, o mexicano Guillermo Arriaga, que escreveu também os fragmentados "Amores
Brutos" e "21 Gramas".
Mais ainda que nos trabalhos
anteriores, a não-linearidade tem
mais força no filme de Jones, pois,
em vez de se dissipar em várias
histórias, o relato ganha intensidade ao mostrar os vários pontos
de vista de um mesmo acontecimento -a morte acidental de
Melquiades Estrada. Cada uma
dessas versões leva o espectador a
entender em detalhe o que se passou dos dois lados daquela morte:
o da vítima e o de seu autor.
A partir deste ponto, o filme
abandona a não-linearidade, porque, tendo alcançado a ênfase sobre os dois lados, Jones pode
aprofundar os significados simbólicos dessa zona de fronteira
em que seu filme e seus personagens se movem.
Em vez de se entregar às facilidades do filme-denúncia sobre as
brutalidades das forças de segurança americanas sobre imigrantes, Jones prefere lançar um olhar
poético e muito mais revelador
sobre as diferenças e distâncias.
Não à toa, o diretor ousa aproximar seu filme da temática e da estética do western, com seus amplos espaços atravessados por
dois homens, que se encontram
fora do domínio da lei. E com sua
temática da fronteira, símbolo de
um outro inassimilável (no século
19, os índios; no século 21, os "chicanos") e com o qual a violência é
a única forma de "convívio".
A linguagem e as referências do
western são retomados, ainda
uma vez, em sua forma crepuscular. A fórmula, inventada pelo último John Ford, trouxe para o gênero uma reinterpretação de sua
própria mitologia e descarregou
nas telas os anti-heróis dos filmes
de Sam Peckinpah, Arthur Penn,
Monte Hellman e Clint Eastwood.
Dotou o gênero de uma consciência política que ele desempenhava
cegamente desde suas origens.
Tal como a trágica Electra grega,
a obsessão do vaqueiro texano em
enterrar seu companheiro mexicano é sinônimo de render justiça, de devolver a identidade, de
consagrar no solo das origens. E
está carregado também da simbologia alegre e festiva dos mortos
na cultura mexicana, celebrada
sob a forma de um cadáver que no
trajeto vira múmia, mas que precisa ser entregue com veneração
ao reino dos mortos para que deixe de assombrar o reino dos vivos.
Para alcançar essa justiça, nunca se terá visto antes no cinema
ser imposta tanta violência a um
personagem americano (sem direito à desforra). Ao retomar o
uso da violência de diretores como Peckinpah e Robert Aldrich
(explicitando para a cultura americana a brutalidade que a constituía desde as origens), "Três Enterros" se insere entre os ótimos
filmes políticos a tentar dar sentido ao caos contemporâneo.
Três Enterros
The Three Burials of Melquiades Estrada
Direção: Tommy Lee Jones
Produção: EUA/França, 2005
Com: Tommy Lee Jones, Barry Pepper
Quando: a partir de hoje nos cines Reserva Cultural e circuito
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