São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2006

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CRÍTICA

Diretor olha a América por cima de seus muros

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

No cinema, como em outras narrativas audiovisuais, as histórias têm três modos de ser contadas. A primeira, de forma escrita, no roteiro. A segunda, visual, nas filmagens. E a terceira, estrutural, na montagem. Cada uma dessas etapas pode transformar uma história de ponta a ponta, dando outro rumo, outro tom e até mesmo outro significado.
Em sua estréia na direção, o ótimo ator Tommy Lee Jones dá provas de talento também do outro lado das câmeras ao contar uma história em que roteiro, imagens e edição foram elaborados para acentuar seus significados.
Em "Três Enterros", Jones narra a morte de um imigrante mexicano e a obsessão de seu chefe, um vaqueiro texano interpretado pelo próprio ator-diretor, para lhe dar um enterro adequado. Num primeiro momento, o corpo de Melquiades Estrada é simplesmente abandonado numa vala. Depois, vai parar anônimo numa cova rasa. Só num terceiro passo é que se cumpre o pedido de ser enterrado em sua terra.
Para os dois primeiros enterros, o filme ganha uma narrativa caleidoscópica, já típica do autor de seu roteiro, o mexicano Guillermo Arriaga, que escreveu também os fragmentados "Amores Brutos" e "21 Gramas".
Mais ainda que nos trabalhos anteriores, a não-linearidade tem mais força no filme de Jones, pois, em vez de se dissipar em várias histórias, o relato ganha intensidade ao mostrar os vários pontos de vista de um mesmo acontecimento -a morte acidental de Melquiades Estrada. Cada uma dessas versões leva o espectador a entender em detalhe o que se passou dos dois lados daquela morte: o da vítima e o de seu autor.
A partir deste ponto, o filme abandona a não-linearidade, porque, tendo alcançado a ênfase sobre os dois lados, Jones pode aprofundar os significados simbólicos dessa zona de fronteira em que seu filme e seus personagens se movem.
Em vez de se entregar às facilidades do filme-denúncia sobre as brutalidades das forças de segurança americanas sobre imigrantes, Jones prefere lançar um olhar poético e muito mais revelador sobre as diferenças e distâncias.
Não à toa, o diretor ousa aproximar seu filme da temática e da estética do western, com seus amplos espaços atravessados por dois homens, que se encontram fora do domínio da lei. E com sua temática da fronteira, símbolo de um outro inassimilável (no século 19, os índios; no século 21, os "chicanos") e com o qual a violência é a única forma de "convívio".
A linguagem e as referências do western são retomados, ainda uma vez, em sua forma crepuscular. A fórmula, inventada pelo último John Ford, trouxe para o gênero uma reinterpretação de sua própria mitologia e descarregou nas telas os anti-heróis dos filmes de Sam Peckinpah, Arthur Penn, Monte Hellman e Clint Eastwood. Dotou o gênero de uma consciência política que ele desempenhava cegamente desde suas origens.
Tal como a trágica Electra grega, a obsessão do vaqueiro texano em enterrar seu companheiro mexicano é sinônimo de render justiça, de devolver a identidade, de consagrar no solo das origens. E está carregado também da simbologia alegre e festiva dos mortos na cultura mexicana, celebrada sob a forma de um cadáver que no trajeto vira múmia, mas que precisa ser entregue com veneração ao reino dos mortos para que deixe de assombrar o reino dos vivos.
Para alcançar essa justiça, nunca se terá visto antes no cinema ser imposta tanta violência a um personagem americano (sem direito à desforra). Ao retomar o uso da violência de diretores como Peckinpah e Robert Aldrich (explicitando para a cultura americana a brutalidade que a constituía desde as origens), "Três Enterros" se insere entre os ótimos filmes políticos a tentar dar sentido ao caos contemporâneo.


Três Enterros
The Three Burials of Melquiades Estrada
    
Direção: Tommy Lee Jones
Produção: EUA/França, 2005
Com: Tommy Lee Jones, Barry Pepper
Quando: a partir de hoje nos cines Reserva Cultural e circuito


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