São Paulo, sábado, 21 de abril de 2007

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Comentário

Projeto reforça competição no jogo das letras

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O "reality show" de letras parece fazer todo o possível para evitar a banalização dos programas televisivos, segundo diz a própria organização do projeto. Não se sabe quem são os autores -assinam com um "ex-libris"-, não há fotos e a comunicação só acontece por meio dos textos. Nada se sabe sobre sua vida pessoal.
Não acredito nisso. Creio que é só mais uma forma de maquiar a banalização, a mesquinharia do processo. Pois um elemento fundamental foi mantido: a exclusão. A cada número de semanas, exclui-se um concorrente, com base na eleição do público e dos juízes, escritores mexicanos consagrados, que também propõem as "provas" literárias.
A democratização da literatura -e parece ser esse um dos objetivos do projeto- fracassa no momento mesmo em que se oferece ao público a chance de excluir os jogadores. Quais são os critérios? Como escrever bem, quando a qualidade depende de concorrência? O que está em jogo: escrever bem ou provocar a queda dos adversários; ler bem ou eliminar os jogadores?
A boa literatura já é um jogo em si mesma. Um jogo no sentido de convocar o leitor à brincadeira, à inutilidade, à subversão de todos os finalismos com que somos obrigados a conviver diariamente. Lendo, esquecemos os nossos objetivos imediatos e nos perdemos numa viagem sem porquê, cujo único motivo é a própria viagem. Não lemos para chegar a algum lugar, além do lugar da própria leitura.
Mas, quando essa brincadeira se transforma em jogo sério, com regras, concorrentes, exclusão, votação, premiação, aí a história é outra. A literatura, a rigor, distrai, diverte e deleita. Distrair é separar, romper, ou seja, sair dos trilhos, mudar a rota. Divertir-se é a mesma coisa: mudar a versão, olhar o mundo de novas formas. E o deleite é a delícia, a ousadia de ter prazer quando o dever pode causar tanto tédio.
A aparente "inovação" desse "reality show" das letras não parece se propor a nada disso. Pelo contrário. Parece colocar a literatura na mesma engrenagem de atenção, concentração e sucesso dos outros negócios (negócio é negação do ócio). Melhor seria um "unreality show", em que todos brincassem, ninguém fosse excluído e o prêmio fosse um "jardim de caminhos que se bifurcam".


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