São Paulo, sábado, 21 de abril de 2007

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Livros - Crítica/romance

Livro policial de Bolaño usa delírios e versões conflitantes

"A Pista de Gelo", do escritor chileno, conta história de assassinato na Espanha

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A Pista de Gelo" foi o primeiro romance individual publicado por Roberto Bolaño. Antes da aparição do livro em 1993, o escritor chileno publicara somente poesia nas revistas extintas da fase "infra-realista" do México de sua juventude.
Muito se entende da pulsão narrativa de Bolaño ao sabê-lo poeta, pois o motor de sua linguagem direta é o ritmo mesmerizante das falas dos personagens, sempre em primeira pessoa e organizadas em "coros". Tal qualidade já era marcante em seus poemas.
As vozes vibrantes que contam a história de "A Pista de Gelo" pertencem a Remo Morán, aventureiro chileno que chega ao povoado de Z, na Costa Brava da Catalunha (inspirada por Blanes, cidade da mesma região e onde Bolaño viveu os últimos anos) para vencer no comércio local, de início como vendedor de bijuterias (assim como o autor, cuja sobrevivência foi garantida com semelhante atividade até os anos 90, quando a literatura começou a mantê-lo) e depois como dono de bar e outros negócios.
O contraponto é feito por Gaspar Heredia, poeta mexicano irregular na Espanha e antigo companheiro de delinqüências líricas no México ao lado de Morán, por quem é empregado como vigia noturno de camping. É inevitável, embora não deixe de ser ingênuo, estabelecer relações entre características de Morán e Heredia com algumas do próprio Bolaño, também vigia noturno durante certo tempo. Sob tal perspectiva é divertido para o leitor testemunhar a gênese, ainda na forma bipartida de dois alter egos distintos e imperfeitos, de Arturo Belano, o duplo do autor em cuja órbita gira toda sua obra cosmogônica e cujo sol é certamente o romance "Os Detetives Selvagens".

Narração
O terceiro narrador de "A Pista de Gelo" é Enric Rosquelles, funcionário de alto escalão da Prefeitura de Z. Rosquelles, figura sórdida e histriônica, apaixona-se por Nuria Martí, a belíssima patinadora olímpica da cidade, e constrói para ela, com verbas indevidas, uma pista de gelo em um palácio abandonado.
Depois disso, a regra de ouro dos romances policiais: ocorre um assassinato. E proliferam suspeitos, todos em algum moxmento hóspedes do camping onde trabalha Heredia, entre eles a cantora de rua e seu companheiro vagabundo, além da enigmática e sedutora sem-teto que aparece e desaparece, sempre carregando uma faca. É então que acontecem as traições amorosas.
E está feito o imbróglio. Às vezes em tom de depoimento policial, noutras beirando o delírio e certa retórica da sedução (e, por que não, da distorção), Morán, Heredia e Rosquelles vão se sucedendo ao contar os episódios que antecedem e sucedem o homicídio, cada qual sob diferente ótica. Qual será a verdadeira?
É difícil não relacionar a estrutura do livro à de "The Ring and the Book" (o anel e o livro), de 1868, clássico poema de Robert Browning que narra a história de um assassinato sob a perspectiva de 12 personagens, do assassino à vítima.
Da vertente menos celebrada da obra do chileno, que inclui os inéditos no Brasil "Amberes" (2002), "Estrella Distante" (1996), "Monsieur Pain" (1999) e "Consejos de un Discípulo de Morrison a un Fanático de Joyce" (1984) -este com A. G. Porta-, "A Pista de Gelo" comprova a importância do gênero policial na conformação da forma particular de sua obra. Nos policiais metafísicos de Roberto Bolaño, entretanto, o que menos importa é saber quem é o assassino. E a vítima certamente não é o leitor.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra)

A PISTA DE GELO
Autor:
Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 37 (200 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia trecho


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