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Livros - Crítica/romance
Livro policial de Bolaño usa delírios e versões conflitantes
"A Pista de Gelo", do escritor chileno, conta história de assassinato na Espanha
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
"A Pista de Gelo" foi o
primeiro romance
individual publicado por Roberto Bolaño. Antes
da aparição do livro em 1993, o
escritor chileno publicara somente poesia nas revistas extintas da fase "infra-realista"
do México de sua juventude.
Muito se entende da pulsão
narrativa de Bolaño ao sabê-lo
poeta, pois o motor de sua linguagem direta é o ritmo mesmerizante das falas dos personagens, sempre em primeira
pessoa e organizadas em "coros". Tal qualidade já era marcante em seus poemas.
As vozes vibrantes que contam a história de "A Pista de
Gelo" pertencem a Remo Morán, aventureiro chileno que
chega ao povoado de Z, na Costa Brava da Catalunha (inspirada por Blanes, cidade da mesma
região e onde Bolaño viveu os
últimos anos) para vencer no
comércio local, de início como
vendedor de bijuterias (assim
como o autor, cuja sobrevivência foi garantida com semelhante atividade até os anos 90,
quando a literatura começou a
mantê-lo) e depois como dono
de bar e outros negócios.
O contraponto é feito por
Gaspar Heredia, poeta mexicano irregular na Espanha e antigo companheiro de delinqüências líricas no México ao lado de
Morán, por quem é empregado
como vigia noturno de camping. É inevitável, embora não
deixe de ser ingênuo, estabelecer relações entre características de Morán e Heredia com algumas do próprio Bolaño, também vigia noturno durante certo tempo. Sob tal perspectiva é
divertido para o leitor testemunhar a gênese, ainda na forma
bipartida de dois alter egos distintos e imperfeitos, de Arturo
Belano, o duplo do autor em cuja órbita gira toda sua obra cosmogônica e cujo sol é certamente o romance "Os Detetives Selvagens".
Narração
O terceiro narrador de "A
Pista de Gelo" é Enric Rosquelles, funcionário de alto escalão
da Prefeitura de Z. Rosquelles,
figura sórdida e histriônica,
apaixona-se por Nuria Martí, a
belíssima patinadora olímpica
da cidade, e constrói para ela,
com verbas indevidas, uma pista de gelo em um palácio abandonado.
Depois disso, a regra de ouro
dos romances policiais: ocorre
um assassinato. E proliferam
suspeitos, todos em algum
moxmento hóspedes do camping onde trabalha Heredia,
entre eles a cantora de rua e seu
companheiro vagabundo, além
da enigmática e sedutora sem-teto que aparece e desaparece,
sempre carregando uma faca. É
então que acontecem as traições amorosas.
E está feito o imbróglio. Às
vezes em tom de depoimento
policial, noutras beirando o delírio e certa retórica da sedução
(e, por que não, da distorção),
Morán, Heredia e Rosquelles
vão se sucedendo ao contar os
episódios que antecedem e sucedem o homicídio, cada qual
sob diferente ótica. Qual será a
verdadeira?
É difícil não relacionar a estrutura do livro à de "The Ring
and the Book" (o anel e o livro),
de 1868, clássico poema de Robert Browning que narra a história de um assassinato sob a
perspectiva de 12 personagens,
do assassino à vítima.
Da vertente menos celebrada
da obra do chileno, que inclui
os inéditos no Brasil "Amberes" (2002), "Estrella Distante"
(1996), "Monsieur Pain" (1999)
e "Consejos de un Discípulo de
Morrison a un Fanático de Joyce" (1984) -este com A. G. Porta-, "A Pista de Gelo" comprova a importância do gênero policial na conformação da forma
particular de sua obra. Nos policiais metafísicos de Roberto
Bolaño, entretanto, o que menos importa é saber quem é o
assassino. E a vítima certamente não é o leitor.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
A PISTA DE GELO
Autor: Roberto Bolaño
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 37 (200 págs.)
Avaliação: ótimo
Leia trecho
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