|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Micropolíticas do eu-corpo
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em 2004, o escritor José Maria
Cançado teve de se submeter
a um transplante de coração. Ainda na UTI, começou a escrever
poemas sobre a cirurgia e o pós-operatório. O resultado é um volume intitulado "O Transplante É
um Baião-de-Dois".
O livro teria tudo para ser uma
reunião de textos confessionais. A
experiência de escapar da morte
graças à desaparição de outrem é
por si só dramática e traz sentimentos ambíguos de culpa e gratidão, mas quase sempre redunda
em depoimentos edificantes sobre superação e solidariedade:
documentos humanos que dificilmente se transformam em artefatos literários.
Cançado, porém, faz uma poesia que coloca em questão, justamente, a representação de temas
que parecem impermeáveis a um
olhar lírico -como o dia-a-dia de
uma enfermaria, a manipulação
científica do corpo ou o ambiente
asséptico que se pode observar de
uma cama de hospital: "Os corpos
preferem saltar no poço/ do inferno/ a serem separados/ pelo gradeadinho pênsil dos leitos// Repugna-lhes a cunha, a membrana,
a panacéia", escreve ele sobre a recusa de pensar em si como conjunto de tecidos e vísceras.
Não se trata aqui de um livro
despido de defeitos, como algumas rimas óbvias (que criam estridência em poemas marcado
pelo ritmo seco) ou imagens de
apelo fácil, que humanizam o órgão humano ("o transplante quer
prolongar/ as canções de um coração veterano").
Mas tais ocorrências são secundárias numa poesia que se apropria de gêneros e autores, revelando o grau de consciência estética
do autor. Assim, em "27 de Outubro - Bashô e os Dois do Baião", o
encontro do haicai com a toada
sertaneja cria a imagem de uma
dança em que um bailarino se define pela falta do outro: "Conhecemos as palmas que dois corações batem/ em dueto, o mesmo
padrão de coração no meio// ?As
que bate um só coração, com uma
única mão,/ para o coração que
ele será do outro lado do espelho?".
Em outro poema, ele reproduz
estrofes de "Invenção de Orfeu",
de Jorge de Lima, que terminam
com os versos "Vós não viveis sozinhos,/ os outros vos invadem/
(...) e tudo subsistências/ e mais
comunidades" -retomados ao
final de "15 de Setembro (13 Horas) - Essa Condição": "Haverá
sempre um lugar/ para essa minha condição/ um fantasma/ alguém que passou por aqui e se foi/
uma inscrição/ a completar/ num
anti-exército/ planetário/ de reserva/ de libertação// Nascer é lajedo/ Renascer é multidão".
A questão central está nesses
versos: a poesia de Cançado nasce
de uma vivência cuja dimensão
traumática beira o incomunicável, mas que, ao se plasmar em
linguagem, adquire uma nova objetividade, que expõe a precariedade do sujeito, quebra seu isolamento.
Como observa Maria Rita Kehl
no prefácio, "a palavra do poeta
revisita os mistérios do corpo, já
não mais arquivado "sob a turquês da morte" e, sim, ressignificado pela presença do novo passageiro. Ou será o contrário, o coração novato o próprio motoneiro a conduzir o eu-corpo através
da multidão que o habita?".
Em ambas as alternativas, trata-se de um exercício de dessubjetivação que não redunda em afasia
ou confinamento, mas possibilita
uma abertura para conteúdos antipoéticos que são também éticos
e sociais: um "eu lírico" para
quem o coração deixou de ser a
metáfora simplória da vida interior, transformando-se em algo
público e, portanto, "transplantável". Com isso, Cançado transforma em matéria de poesia uma
realidade feita de biópsias, catéteres, UTIs e enfermeiros cuja hierarquia permite perceber, não
sem ironia, as "micropolíticas de
fôlego curto" que permeiam a
saúde pública brasileira.
Estamos habituados a ver questões políticas entrarem na poesia
por um viés épico ou revolucionário. Cançado traz esses temas para
o rés-do-chão e com uma dicção
popular que corre o risco de
transformar a poesia num fórum
de debates cívicos. Vale para o livro o que escreveu sobre sua experiência: "No transplante, não
dá para saber/ o que é carbúnculo,
o que é diamante".
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
O Transplante É um Baião-de-Dois
Autor: José Maria Cançado
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 20 (38 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: A Biblioteca de Manguel: "Machado explode e reconstrói o romance" Índice
|