São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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RODAPÉ

Micropolíticas do eu-corpo

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em 2004, o escritor José Maria Cançado teve de se submeter a um transplante de coração. Ainda na UTI, começou a escrever poemas sobre a cirurgia e o pós-operatório. O resultado é um volume intitulado "O Transplante É um Baião-de-Dois".
O livro teria tudo para ser uma reunião de textos confessionais. A experiência de escapar da morte graças à desaparição de outrem é por si só dramática e traz sentimentos ambíguos de culpa e gratidão, mas quase sempre redunda em depoimentos edificantes sobre superação e solidariedade: documentos humanos que dificilmente se transformam em artefatos literários.
Cançado, porém, faz uma poesia que coloca em questão, justamente, a representação de temas que parecem impermeáveis a um olhar lírico -como o dia-a-dia de uma enfermaria, a manipulação científica do corpo ou o ambiente asséptico que se pode observar de uma cama de hospital: "Os corpos preferem saltar no poço/ do inferno/ a serem separados/ pelo gradeadinho pênsil dos leitos// Repugna-lhes a cunha, a membrana, a panacéia", escreve ele sobre a recusa de pensar em si como conjunto de tecidos e vísceras.
Não se trata aqui de um livro despido de defeitos, como algumas rimas óbvias (que criam estridência em poemas marcado pelo ritmo seco) ou imagens de apelo fácil, que humanizam o órgão humano ("o transplante quer prolongar/ as canções de um coração veterano").
Mas tais ocorrências são secundárias numa poesia que se apropria de gêneros e autores, revelando o grau de consciência estética do autor. Assim, em "27 de Outubro - Bashô e os Dois do Baião", o encontro do haicai com a toada sertaneja cria a imagem de uma dança em que um bailarino se define pela falta do outro: "Conhecemos as palmas que dois corações batem/ em dueto, o mesmo padrão de coração no meio// ?As que bate um só coração, com uma única mão,/ para o coração que ele será do outro lado do espelho?".
Em outro poema, ele reproduz estrofes de "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima, que terminam com os versos "Vós não viveis sozinhos,/ os outros vos invadem/ (...) e tudo subsistências/ e mais comunidades" -retomados ao final de "15 de Setembro (13 Horas) - Essa Condição": "Haverá sempre um lugar/ para essa minha condição/ um fantasma/ alguém que passou por aqui e se foi/ uma inscrição/ a completar/ num anti-exército/ planetário/ de reserva/ de libertação// Nascer é lajedo/ Renascer é multidão".
A questão central está nesses versos: a poesia de Cançado nasce de uma vivência cuja dimensão traumática beira o incomunicável, mas que, ao se plasmar em linguagem, adquire uma nova objetividade, que expõe a precariedade do sujeito, quebra seu isolamento.
Como observa Maria Rita Kehl no prefácio, "a palavra do poeta revisita os mistérios do corpo, já não mais arquivado "sob a turquês da morte" e, sim, ressignificado pela presença do novo passageiro. Ou será o contrário, o coração novato o próprio motoneiro a conduzir o eu-corpo através da multidão que o habita?".
Em ambas as alternativas, trata-se de um exercício de dessubjetivação que não redunda em afasia ou confinamento, mas possibilita uma abertura para conteúdos antipoéticos que são também éticos e sociais: um "eu lírico" para quem o coração deixou de ser a metáfora simplória da vida interior, transformando-se em algo público e, portanto, "transplantável". Com isso, Cançado transforma em matéria de poesia uma realidade feita de biópsias, catéteres, UTIs e enfermeiros cuja hierarquia permite perceber, não sem ironia, as "micropolíticas de fôlego curto" que permeiam a saúde pública brasileira.
Estamos habituados a ver questões políticas entrarem na poesia por um viés épico ou revolucionário. Cançado traz esses temas para o rés-do-chão e com uma dicção popular que corre o risco de transformar a poesia num fórum de debates cívicos. Vale para o livro o que escreveu sobre sua experiência: "No transplante, não dá para saber/ o que é carbúnculo, o que é diamante".


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

O Transplante É um Baião-de-Dois
   
Autor: José Maria Cançado
Editora: Scriptum
Quanto: R$ 20 (38 págs.)


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