São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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Micropolítica predomina na disputa

DO ENVIADO A CANNES

O 58º Festival de Cannes foi um dos melhores dos últimos anos, apresentando uma penca de bons filmes de grandes diretores, como David Cronenberg, Lars von Trier, Jim Jarmusch, Gus van Sant, Wim Wenders e Hou Hsiao Hsien. A maioria dos 21 filmes concorrentes adotou formas e narrativas mais clássicas.
No ano passado, ainda sob os efeitos da invasão do Iraque, a mostra cinematográfica foi marcadamente macropolítica e acabou dando a Palma de Ouro a "Fahrenheit 11 de Setembro", do americano Michael Moore.
Neste ano, mesmo quando trataram de um tema forte como o da imigração, os filmes tiveram principalmente um enfoque micropolítico, abordando, numa perspectiva social, a família, a paternidade e a vida de casal.

A família em questão
Numa época em que movimentos sociais e os partidos entraram em crise, sobretudo no Primeiro Mundo, a família transformou-se para os filmes em Cannes na principal questão ética e política. Qual o significado social de uma família? Para que preservar a família? O que quer uma família?
Estas são as questões de "Lemming" (de Dominik Moll), "Caché" (Michael Haneke), "O Anjo da Morte" (Cronenberg), "Broken Flowers" (Jarmusch), "L'Enfant" (irmãos Dardenne), "Peindre ou Faire L'Amour" (irmãos Larrieu) e "Don't Come Knockin'" (Wenders).
Cada filme responde à sua maneira, ora com ironia, ora com esperança, alguns com visada política, outros, poética. Em quase todos, a família não é algo dado, nem algo fácil de se obter. Ela deixa de ser simples convenção, para se tornar um problema permanente e uma conquista.

O casal
O tema da família leva a tratar por conseqüência da questão do casal. O que mantém homem e mulher juntos num mundo extramoral e sexualmente aberto?
Nos filmes em Cannes, o casal precisa passar por uma espécie de choque ou psicodrama, que desmonta a hipocrisia pequeno-burguesa e faz da franqueza e da compreensão a base das relações, como em "Peindre ou Faire L'Amour" (pintar ou fazer amor), "Lemming" e "O Anjo da Morte".

A paternidade
A paternidade, mais do que a maternidade, predominou na abordagem dos filmes. Em "Broken Flowers" e "Don't Come Knockin'", vemos homens buscando filhos que eles não conhecem. Em "L'Enfant", um pai vende o seu bebê.
Entre pai e filho, vigora uma forte cisão. A paternidade vira algo complicado de ser conquistado e que não é dado apenas pela natureza. Homens solitários ou enfraquecidos de repente imaginam que um filho e uma família possam dar um sentido à sua vida. Não há nenhuma nostalgia do patriarcalismo, mas uma restauração problemática da figura do pai.
A paternidade é assunto até mesmo de "A Vingança dos Sith", terceiro episódio de "Guerra nas Estrelas", dirigido por George Lucas, cuja première ocorreu em Cannes com uma festa bombástica.

A força da história
Homens que escondem seu passado foram assunto de filmes como "Caché", "O Anjo da Morte" e "Where the Truth Lies" (onde a verdade repousa), de Atom Egoyan. Outros homens saem atrás de seu passado, como Sam Shepard em "Don't Come Knockin'", ou do passado de amigos, como "The Three Burials of Melquiades Estrada" (os três enterros de Melquiades Estrada), estréia na direção de longas do ator Tommy Lee Jones.
O passado questiona o presente e, às vezes, historiciza as relações pessoais, como em "Caché", que relaciona um recalcado familiar com a colonização francesa na Argélia.
O passado dá força às narrativas e serve de crítica a um mundo que perdeu a espessura histórica e tende a mergulhar num presente perpétuo e niilista, como reflete "Three Times", de Hou Hsiao Hsien.
(ALN)


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