São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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Paralelas ressaltam a produção oriental

PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES

Não bastassem os cerca de 50 longas da seleção oficial, constituída por competição, filmes hors-concours e a Um Certo Olhar (todos escolhidos pelo mesmo comitê), Cannes abriga ainda duas mostras paralelas de peso.
A Semana da Crítica dedica-se exclusivamente à descoberta de novos talentos e apresenta, desde 62, primeiros ou segundos longas.
A Quinzena dos Realizadores, por sua vez, nasceu da repercussão de maio de 68 como uma dissidência explícita da Sociedade dos Cineastas (leia-se: expoentes da nouvelle vague), que criou uma mostra própria "sem competição nem censura, estranha a todas as considerações diplomáticas", como diz seu estatuto.
Neste ano, a Quinzena apresentou duas alternativas a um tema dominante na seleção oficial: pais à procura de seus filhos. Os belos "Keane", do americano Lodge Kerrigan, e "Alice", do português Marco Martins, contam histórias muito parecidas, de pais que estão à beira da loucura com o desaparecimento de suas crianças. Ao contrário dos filmes de Wenders e Jarmusch, "Keane" e "Alice" falam de uma ausência pior do que a morte, porque dominada pela incerteza, e retratam os centros urbanos como "monstros".
Outra questão interessante que surgiu foi o efeito das novas tecnologias nos relacionamentos humanos. No filme-painel "Me, You and Everyone We Know", da Semana da Crítica, por exemplo, uma das histórias mostra um menino de oito anos que se corresponde com uma mulher bem mais velha em um chat de internet. Frases típicas de um garoto dessa idade (recheadas de escatologia) são tomadas como subversões sexuais excitantes pela parceira invisível. É uma estréia promissora de Miranda July.
Já "Be with Me", do cineasta de Cingapura Eric Khoo, exibido na Quinzena, traz histórias de amor paralelas que obedecem a um "dispositivo" comum: quando os personagens confessam seu amor, não falam, mas digitam (em máquinas de escrever, computadores ou celulares). É como se o amor fosse um sentimento antes de tudo tátil. Khoo aborda temas fora de moda (romance, solidariedade e compaixão) sem medo de parecer cafona.
A Coréia, que no ano passado roubou a cena da competição com "Oldboy", foi um dos destaques da Quinzena em dois filmes de alto impacto: a sátira política "The President's Last Bang", de Im Sang Soo (título que poderia ser livremente traduzido como "A Última Bimbada do Presidente"), e o melodrama de boxe "Crying Fist", de Ryoo Seung Wan.
É difícil imaginar uma abordagem mais provocativa do que a de Im Sang Soo para um trauma da Coréia (o assassinato do presidente Park Chunghee, em 78). O diretor trata o fato sem cerimônia, transformando as últimas horas de uma terrível conspiração política em um filme de ação cômico.
Já "Crying Fist" é como um "O Campeão" coreano, recriação dos antigos melodramas de boxe que acompanha a vida de um velho lutador (Choi Min-Sik, de "Old Boy") e de um jovem candidato a campeão (Ryoo Seung-bum).
Por fim, outra boa surpresa da Quinzena veio do Japão. Com o assustador título de "Who's Camus, Anyway?", esse décimo longa de Mitsuo Yanagimashi é uma obra um tanto pessoal, que reflete a trajetória recente do próprio diretor. Yanagimashi não filmava há mais de dez anos, período em que se dedicou a ensinar cinema. Esse seu novo longa se passa no campus da universidade onde ele leciona e mostra alunos às voltas com a realização de um filme.
Com um tom por vezes ingênuo, mas que destila um amor pelo cinema cada vez mais raro de ver, "Who's Camus, Anyway?" não é um réquiem saudoso a uma arte perdida, apesar de falar o tempo todo da crise do cinema.


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