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Paralelas ressaltam a produção oriental
PEDRO BUTCHER
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
Não bastassem os cerca de 50
longas da seleção oficial, constituída por competição, filmes
hors-concours e a Um Certo
Olhar (todos escolhidos pelo mesmo comitê), Cannes abriga ainda
duas mostras paralelas de peso.
A Semana da Crítica dedica-se
exclusivamente à descoberta de
novos talentos e apresenta, desde
62, primeiros ou segundos longas.
A Quinzena dos Realizadores,
por sua vez, nasceu da repercussão de maio de 68 como uma dissidência explícita da Sociedade
dos Cineastas (leia-se: expoentes
da nouvelle vague), que criou
uma mostra própria "sem competição nem censura, estranha a
todas as considerações diplomáticas", como diz seu estatuto.
Neste ano, a Quinzena apresentou duas alternativas a um tema
dominante na seleção oficial: pais
à procura de seus filhos. Os belos
"Keane", do americano Lodge
Kerrigan, e "Alice", do português
Marco Martins, contam histórias
muito parecidas, de pais que estão
à beira da loucura com o desaparecimento de suas crianças. Ao
contrário dos filmes de Wenders e
Jarmusch, "Keane" e "Alice" falam de uma ausência pior do que
a morte, porque dominada pela
incerteza, e retratam os centros
urbanos como "monstros".
Outra questão interessante que
surgiu foi o efeito das novas tecnologias nos relacionamentos humanos. No filme-painel "Me, You
and Everyone We Know", da Semana da Crítica, por exemplo,
uma das histórias mostra um menino de oito anos que se corresponde com uma mulher bem
mais velha em um chat de internet. Frases típicas de um garoto
dessa idade (recheadas de escatologia) são tomadas como subversões sexuais excitantes pela parceira invisível. É uma estréia promissora de Miranda July.
Já "Be with Me", do cineasta de
Cingapura Eric Khoo, exibido na
Quinzena, traz histórias de amor
paralelas que obedecem a um
"dispositivo" comum: quando os
personagens confessam seu
amor, não falam, mas digitam
(em máquinas de escrever, computadores ou celulares). É como
se o amor fosse um sentimento
antes de tudo tátil. Khoo aborda
temas fora de moda (romance,
solidariedade e compaixão) sem
medo de parecer cafona.
A Coréia, que no ano passado
roubou a cena da competição
com "Oldboy", foi um dos destaques da Quinzena em dois filmes
de alto impacto: a sátira política
"The President's Last Bang", de
Im Sang Soo (título que poderia
ser livremente traduzido como "A
Última Bimbada do Presidente"),
e o melodrama de boxe "Crying
Fist", de Ryoo Seung Wan.
É difícil imaginar uma abordagem mais provocativa do que a de
Im Sang Soo para um trauma da
Coréia (o assassinato do presidente Park Chunghee, em 78). O
diretor trata o fato sem cerimônia,
transformando as últimas horas
de uma terrível conspiração política em um filme de ação cômico.
Já "Crying Fist" é como um "O
Campeão" coreano, recriação dos
antigos melodramas de boxe que
acompanha a vida de um velho
lutador (Choi Min-Sik, de "Old
Boy") e de um jovem candidato a
campeão (Ryoo Seung-bum).
Por fim, outra boa surpresa da
Quinzena veio do Japão. Com o
assustador título de "Who's Camus, Anyway?", esse décimo longa de Mitsuo Yanagimashi é uma
obra um tanto pessoal, que reflete
a trajetória recente do próprio diretor. Yanagimashi não filmava
há mais de dez anos, período em
que se dedicou a ensinar cinema.
Esse seu novo longa se passa no
campus da universidade onde ele
leciona e mostra alunos às voltas
com a realização de um filme.
Com um tom por vezes ingênuo, mas que destila um amor pelo cinema cada vez mais raro de
ver, "Who's Camus, Anyway?"
não é um réquiem saudoso a uma
arte perdida, apesar de falar o
tempo todo da crise do cinema.
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