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ROMANCE/"MILONGA"
Obra de Cartano revive Caim e Abel
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Milonga" , título deste
romance do veterano
editor e escritor francês Tony Cartano, alude a um poema de Borges, para quem esse gênero musical era superior ao tango, ao qual
antecede. O poema é "Milonga de
Dois Irmãos": "Así de manera
fiel/conté la historia hasta el fin/Es
la historia de Caín/ que sigue matando a Abel".
Trata-se, portanto, da história
de Caim, "que segue matando
Abel". A chave está na construção
verbal, pois não se trata do fato de
Caim ter matado Abel, mas de ele
continuar matando, repetida,
cruel e futilmente.
Os irmãos do livro são Rafael e
Gabriel. O primeiro é um truculento repórter-fotográfico, especialista em coberturas de guerra.
Gabriel é seu antípoda: elegante,
sensível, bissexual, é dançarino,
autor de pretensiosos painéis coreográficos. Entre os dois está a irmã-gêmea de Rafael, Estefânia,
pintora de temperamento melancólico, que morre cedo.
Os três (ou quase, pois logo sabemos da morte de Estefânia) começam o romance exilados na
Europa. Foram levados para lá
pela madrasta francesa, após o
pai, dr. Aureliano Ortega, ter sido
assassinado em circunstâncias
mal explicadas. Apesar de suas
supostas realizações artísticas, a
esterilidade e a paralisia assombram os irmãos.
Como no verso de Lamartine,
citado por Rafael cuja profissão,
aliás, busca esse congelamento do
instante: "Ó tempo, suspende teu
vôo". Pouco depois, diz Estefânia:
"Gostaria de me ver transformada
em estátua no pátio da Casa. Imóvel, impenetrável".
Residência dos Ortegas na Argentina, a "Casa" era de onde o
patriarca emitia laudos apócrifos
para acobertar a morte de torturados. A roda da casa, mencionada diversas vezes, remete ao instrumento de tortura e configura
esse tempo circular, na qual se
enredam os irmãos, incapazes de
obliterar a mancha paterna. Mais
do que uma narrativa sobre ódios
fraternais, trata-se de um romance sobre culpas ancestrais, que
clamam por expiação.
O romance padece um pouco
desse traço obsessivo de prisão
existencial. Rafael, por cuja voz
conhecemos a maior parte da história, é um personagem que não
sai do lugar, psicologicamente falando: ressentido e lamuriento,
ele destila sua amargura contra a
humanidade, num negrume sem
remissão. Ouvi-lo falar não é das
coisas mais agradáveis.
Em comparação, Gabriel nos
soa quase sensato, embora pareça
tão pedante quanto o irmão, e Estefânia proporciona um contraponto lírico. Sem dúvida, não ajuda o fato de o romance, a partir da
segunda parte, entrar numa nota
desbragadamente melodramática, de folhetim rasgado: dúvidas
começam a pairar sobre a paternidade dos irmãos.
Tudo isso torna o romance de
Cartano uma obra falhada -ainda que apresente bons momentos
e reflita com seriedade um sentimento de exílio a que a história
moderna da Argentina parece
condenar os seus artistas. Como
numa má milonga, porém, há
muito lamento para pouca arte.
Milonga
Autor: Tony Cartano
Tradução: Procópio Abreu
Editora: Record
Quanto: R$ 39,90 (352 págs.)
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