São Paulo, sábado, 21 de maio de 2005

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ROMANCE/"MILONGA"

Obra de Cartano revive Caim e Abel

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

"Milonga" , título deste romance do veterano editor e escritor francês Tony Cartano, alude a um poema de Borges, para quem esse gênero musical era superior ao tango, ao qual antecede. O poema é "Milonga de Dois Irmãos": "Así de manera fiel/conté la historia hasta el fin/Es la historia de Caín/ que sigue matando a Abel".
Trata-se, portanto, da história de Caim, "que segue matando Abel". A chave está na construção verbal, pois não se trata do fato de Caim ter matado Abel, mas de ele continuar matando, repetida, cruel e futilmente.
Os irmãos do livro são Rafael e Gabriel. O primeiro é um truculento repórter-fotográfico, especialista em coberturas de guerra. Gabriel é seu antípoda: elegante, sensível, bissexual, é dançarino, autor de pretensiosos painéis coreográficos. Entre os dois está a irmã-gêmea de Rafael, Estefânia, pintora de temperamento melancólico, que morre cedo.
Os três (ou quase, pois logo sabemos da morte de Estefânia) começam o romance exilados na Europa. Foram levados para lá pela madrasta francesa, após o pai, dr. Aureliano Ortega, ter sido assassinado em circunstâncias mal explicadas. Apesar de suas supostas realizações artísticas, a esterilidade e a paralisia assombram os irmãos.
Como no verso de Lamartine, citado por Rafael cuja profissão, aliás, busca esse congelamento do instante: "Ó tempo, suspende teu vôo". Pouco depois, diz Estefânia: "Gostaria de me ver transformada em estátua no pátio da Casa. Imóvel, impenetrável".
Residência dos Ortegas na Argentina, a "Casa" era de onde o patriarca emitia laudos apócrifos para acobertar a morte de torturados. A roda da casa, mencionada diversas vezes, remete ao instrumento de tortura e configura esse tempo circular, na qual se enredam os irmãos, incapazes de obliterar a mancha paterna. Mais do que uma narrativa sobre ódios fraternais, trata-se de um romance sobre culpas ancestrais, que clamam por expiação.
O romance padece um pouco desse traço obsessivo de prisão existencial. Rafael, por cuja voz conhecemos a maior parte da história, é um personagem que não sai do lugar, psicologicamente falando: ressentido e lamuriento, ele destila sua amargura contra a humanidade, num negrume sem remissão. Ouvi-lo falar não é das coisas mais agradáveis.
Em comparação, Gabriel nos soa quase sensato, embora pareça tão pedante quanto o irmão, e Estefânia proporciona um contraponto lírico. Sem dúvida, não ajuda o fato de o romance, a partir da segunda parte, entrar numa nota desbragadamente melodramática, de folhetim rasgado: dúvidas começam a pairar sobre a paternidade dos irmãos.
Tudo isso torna o romance de Cartano uma obra falhada -ainda que apresente bons momentos e reflita com seriedade um sentimento de exílio a que a história moderna da Argentina parece condenar os seus artistas. Como numa má milonga, porém, há muito lamento para pouca arte.


Milonga
  
Autor: Tony Cartano
Tradução: Procópio Abreu
Editora: Record
Quanto: R$ 39,90 (352 págs.)



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