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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Maria Schneider salvou Portugal
Com a revolução de 1974, a atriz aterrava em Portugal, com a cena da manteiga em "O Último Tango em Paris"
DEIXEI DE comer manteiga depois de assistir ao filme "O
Último Tango em Paris". A
seqüência é conhecida: Maria
Schneider, então com 19, sodomizada por Marlon Brando. Sou criatura
impressionável. Mas tenho certo carinho pela Maria da manteiga. Carinho histórico, entendam. E, quando
leio, na imprensa do dia, uma longa
entrevista com Schneider, hoje com
54, não posso conter duas ou três lágrimas metafóricas.
Schneider vive em Paris. Melhor:
sobrevive em Paris. Depois do filme
de Bertolucci, caiu na depressão e na
droga. Teve experiência com homens, mulheres. Abandonada, enterrou a carreira e afirma, com visível tristeza, que jamais teria feito o
filme se soubesse as conseqüências.
A celebridade, aos 19, faz estragos.
Como a seqüência da manteiga: não
estava no roteiro. Estava apenas na
cabeça de Brando. Ela aceitou fazer.
Chorou de humilhação.
Pobrezinha. Como eu a entendo.
Mas seria bom que Maria Schneider
também entendesse como ela foi decisiva para a vida do meu país. Toda
a gente conhece a história: em 1974,
Portugal enterrava uma longa ditadura com uma revolução tranqüila.
Mas a questão intrigante é tentar saber como uma revolução de esquerda não atirou o país para uma ditadura de esquerda. Kissinger afirmava que Mário Soares, líder dos socialistas, seria devorado por Álvaro Cunhal, líder dos comunistas. Como
Kerensky fora devorado por Lênin
em 1917. Kissinger errou, Cunhal
perdeu, Soares ganhou.
Razões? Sim, Soares ganhou por
lucidez política: pela capacidade
única de não alienar a igreja e a classe média, que Cunhal desprezara na
sua cartilha marxista. E, sim, Cunhal
perdeu porque, ao namorar com os
militares e perder o controle sobre
eles, surgiu ao país com o seu verdadeiro rosto: o rosto das nacionalizações agressivas e outras loucuras revolucionárias. Nas eleições legislativas de 1975, o velho Partido Comunista surgia em terceiro lugar, com
resultado humilhante.
Mas existe uma explicação suplementar para a democracia ter derrotado o stalinismo em Portugal. E
aqui Maria Schneider tem palavra
importante. Durante quatro décadas, os portugueses viveram com a
censura sobre os ossos: um mundo
fechado e atrasado, onde não existiam homossexuais ou suicidas nos
jornais; onde não existia oposição
política nas ruas; onde não existia
uma garrafa de Coca-Cola nos cafés,
porque Salazar não tolerava que o
"capitalismo americano" invadisse
as estradas do seu Portugal idílico.
Com a revolução, Maria Schneider aterrava em Portugal. Com a
manteiga. E Marlon Brando disposto a usá-la. As filas para o cinema
eram quilométricas. Um tio meu, já
morto, assistiu oito vezes ao filme,
no espaço de três dias, com a curiosidade típica de um alienado.
Não, não foi o realismo de Soares a
derrotar a utopia de Cunhal. Em
1974, os portugueses não estavam
interessados em trocar uma ditadura por outra. Não trocariam a Coimbra de Salazar pela Moscou de Cunhal, sobretudo quando havia
Schneider por perto. Alguém deveria contar esta história a uma mulher injustamente amargurada.
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