São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2006

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Maria Schneider salvou Portugal

Com a revolução de 1974, a atriz aterrava em Portugal, com a cena da manteiga em "O Último Tango em Paris"

DEIXEI DE comer manteiga depois de assistir ao filme "O Último Tango em Paris". A seqüência é conhecida: Maria Schneider, então com 19, sodomizada por Marlon Brando. Sou criatura impressionável. Mas tenho certo carinho pela Maria da manteiga. Carinho histórico, entendam. E, quando leio, na imprensa do dia, uma longa entrevista com Schneider, hoje com 54, não posso conter duas ou três lágrimas metafóricas.
Schneider vive em Paris. Melhor: sobrevive em Paris. Depois do filme de Bertolucci, caiu na depressão e na droga. Teve experiência com homens, mulheres. Abandonada, enterrou a carreira e afirma, com visível tristeza, que jamais teria feito o filme se soubesse as conseqüências. A celebridade, aos 19, faz estragos.
Como a seqüência da manteiga: não estava no roteiro. Estava apenas na cabeça de Brando. Ela aceitou fazer. Chorou de humilhação.
Pobrezinha. Como eu a entendo. Mas seria bom que Maria Schneider também entendesse como ela foi decisiva para a vida do meu país. Toda a gente conhece a história: em 1974, Portugal enterrava uma longa ditadura com uma revolução tranqüila. Mas a questão intrigante é tentar saber como uma revolução de esquerda não atirou o país para uma ditadura de esquerda. Kissinger afirmava que Mário Soares, líder dos socialistas, seria devorado por Álvaro Cunhal, líder dos comunistas. Como Kerensky fora devorado por Lênin em 1917. Kissinger errou, Cunhal perdeu, Soares ganhou.
Razões? Sim, Soares ganhou por lucidez política: pela capacidade única de não alienar a igreja e a classe média, que Cunhal desprezara na sua cartilha marxista. E, sim, Cunhal perdeu porque, ao namorar com os militares e perder o controle sobre eles, surgiu ao país com o seu verdadeiro rosto: o rosto das nacionalizações agressivas e outras loucuras revolucionárias. Nas eleições legislativas de 1975, o velho Partido Comunista surgia em terceiro lugar, com resultado humilhante.
Mas existe uma explicação suplementar para a democracia ter derrotado o stalinismo em Portugal. E aqui Maria Schneider tem palavra importante. Durante quatro décadas, os portugueses viveram com a censura sobre os ossos: um mundo fechado e atrasado, onde não existiam homossexuais ou suicidas nos jornais; onde não existia oposição política nas ruas; onde não existia uma garrafa de Coca-Cola nos cafés, porque Salazar não tolerava que o "capitalismo americano" invadisse as estradas do seu Portugal idílico.
Com a revolução, Maria Schneider aterrava em Portugal. Com a manteiga. E Marlon Brando disposto a usá-la. As filas para o cinema eram quilométricas. Um tio meu, já morto, assistiu oito vezes ao filme, no espaço de três dias, com a curiosidade típica de um alienado.
Não, não foi o realismo de Soares a derrotar a utopia de Cunhal. Em 1974, os portugueses não estavam interessados em trocar uma ditadura por outra. Não trocariam a Coimbra de Salazar pela Moscou de Cunhal, sobretudo quando havia Schneider por perto. Alguém deveria contar esta história a uma mulher injustamente amargurada.


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