São Paulo, quinta-feira, 21 de junho de 2007

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Crítica

Autor vai fundo ao confundir real e ficcional

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

S e J.M. Coetzee fosse um escritor "normal", os primeiros capítulos de "Homem Lento" bastariam para colocá-lo em uma reduzida lista daqueles que têm pleno domínio das possibilidades de seu "ofício". O jogo, calculado nos mínimos detalhes, entre contenção, desespero e humor presente em toda a seqüência de cenas do senhor de 60 anos que dirige sua bicicleta, percebe-se atropelado por um carro e tem, posteriormente, parte de sua perna amputada em um hospital é primoroso.
Por alguns capítulos, é isso que o leitor acompanha: a vida de Paul Rayment, esse fotógrafo e arquivista franco-australiano, virada do avesso por conta do acidente; suas dificuldades com as ajudantes, sua recusa em usar uma prótese, seu encantamento por uma enfermeira que consegue cuidar dele de modo adequado, seu desejo que renasce no vislumbre de uma mulher distante, seu sofrimento.
"Cansado de coração, cansado de cabeça, cansado até os ossos, e, verdade seja dita, cansado de si mesmo -cansado mesmo antes de a ira de Deus, transmitida por intermédio de seu anjo, Wayne Blight, o atingir. Ele jamais diminuiria esse evento, a colisão. Foi nada menos que uma calamidade. Encolheu seu mundo, transformou-o em um prisioneiro." Mas Coetzee não busca e não quer o "normal", como vem demonstrando a cada livro que publica ("Inimaginável, talvez; mas o inimaginável está aí para ser imaginado"). Aqui o distúrbio ocorre quando surge do nada e entra na história Elizabeth Cos- tello, escritora que já fora protagonista (e não só) de seu livro anterior ("Elizabeth Costello"). Ela quer assumir o controle de tudo que acontece, "dirigindo" Rayment -para irritação e incredulidade deste- e mesmo antecipando o que acontecerá se ele não seguir suas instruções.
As noções de autor, narrador, personagem, mundo fictício, mundo real se desestabilizam totalmente e não é nada fácil tentar reencaixá-las em qualquer quadro lógico. Se isso parece muito confuso, não se preocupe, pois não é, ou melhor, não fica. Outros autores já fizeram inúmeras vezes coisas parecidas (vale notar, para dar um exemplo bem recente, que em "Viagens no Scriptorium", Paul Auster lida com questões semelhantes de um jeito divertido, mas menos sutil e elaborado). A diferença é o alcance que cada um dá à estratégia. E Coetzee vai fundo. Ou longe.

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


HOMEM LENTO
Autor:
J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46 (280 págs.)
Avaliação: ótimo



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