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Crítica
Autor vai fundo ao confundir real e ficcional
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
S
e J.M. Coetzee fosse
um escritor "normal", os primeiros
capítulos de "Homem
Lento" bastariam para colocá-lo em uma reduzida
lista daqueles que têm pleno domínio das possibilidades de seu "ofício". O jogo, calculado nos mínimos
detalhes, entre contenção,
desespero e humor presente em toda a seqüência
de cenas do senhor de 60
anos que dirige sua bicicleta, percebe-se atropelado
por um carro e tem, posteriormente, parte de sua
perna amputada em um
hospital é primoroso.
Por alguns capítulos, é
isso que o leitor acompanha: a vida de Paul Rayment, esse fotógrafo e arquivista franco-australiano, virada do avesso por
conta do acidente; suas dificuldades com as ajudantes, sua recusa em usar
uma prótese, seu encantamento por uma enfermeira que consegue cuidar dele de modo adequado, seu
desejo que renasce no vislumbre de uma mulher
distante, seu sofrimento.
"Cansado de coração,
cansado de cabeça, cansado até os ossos, e, verdade
seja dita, cansado de si
mesmo -cansado mesmo
antes de a ira de Deus,
transmitida por intermédio de seu anjo, Wayne
Blight, o atingir. Ele jamais
diminuiria esse evento, a
colisão. Foi nada menos
que uma calamidade. Encolheu seu mundo, transformou-o em um prisioneiro."
Mas Coetzee não busca
e não quer o "normal", como vem demonstrando a
cada livro que publica
("Inimaginável, talvez;
mas o inimaginável está aí
para ser imaginado"). Aqui
o distúrbio ocorre quando
surge do nada e entra na
história Elizabeth Cos-
tello, escritora que já fora
protagonista (e não só) de
seu livro anterior ("Elizabeth Costello"). Ela quer
assumir o controle de tudo
que acontece, "dirigindo"
Rayment -para irritação e
incredulidade deste- e
mesmo antecipando o que
acontecerá se ele não seguir suas instruções.
As noções de autor, narrador, personagem, mundo fictício, mundo real se
desestabilizam totalmente e não é nada fácil tentar
reencaixá-las em qualquer
quadro lógico. Se isso parece muito confuso, não se
preocupe, pois não é, ou
melhor, não fica. Outros
autores já fizeram inúmeras vezes coisas parecidas
(vale notar, para dar um
exemplo bem recente, que
em "Viagens no Scriptorium", Paul Auster lida
com questões semelhantes de um jeito divertido,
mas menos sutil e elaborado). A diferença é o alcance que cada um dá à estratégia. E Coetzee vai fundo.
Ou longe.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da USP.
HOMEM LENTO
Autor: J.M. Coetzee
Tradução: José Rubens Siqueira Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 46 (280 págs.)
Avaliação: ótimo
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