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Comentário
Autores do porte de Coetzee não precisam de complacência
No Brasil, romances do escritor sul-africano costumam ser lidos com zelo desmedido
FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A
presença de J. M. Coetzee na próxima Flip e o
lançamento no Brasil
de seu romance "Homem Lento" devem trazê-lo novamente
aos holofotes e consolidar a
unanimidade estabelecida em
torno dele nos últimos anos.
Desde a publicação de "Deson-
ra" por aqui, no fim de 2000,
Coetzee é forte candidato à
condição de sumidade literária
da vez: no mesmo momento em
que passava por uma redescoberta pelos jornalistas, editores
e pelas poucas centenas de leitores de praxe, os prêmios de
vulto que arrematou (mais um
Booker Prize em 1999 e, em
2003, o Nobel) indicaram um
caminho seguro aos que procuravam um nome para incensar.
O jeitão esquivo e lacônico, a
sólida inserção no mundo acadêmico (publica regularmente
no "New York Review of
Books"), a origem sul-africana
e o acento beckettiano, mesmo
nos textos mais políticos, terminam por compor os traços
do que aos poucos vai se mostrando um tipo ideal de ídolo literário.
Quem perde com isso é sua
obra -ou ao menos sua recepção no Brasil. Ninguém discorda de que "Desonra" é um livro
que expõe com nitidez as feridas da África do Sul pós-apartheid. Nem de que o declínio do
protagonista, coroado por uma
cena em que testemunha o estupro da filha, fixa uma imagem
poderosa da violência contemporânea. Mas a leitura predisposta apenas ao elogio tende a
passar batido pelas pedras no
caminho, das quais pouco ou
nada se falou. Um exemplo é a
ópera que o personagem central planeja compor. As passagens a esse respeito falam mais
das veleidades eruditas do autor e de artifícios de profundidade do que da crise de um professor universitário afastado
por assédio sexual. Há ali uma
impostação que não orna nem
com as necessidades do enredo,
nem com a sobriedade fria que
se costuma atribuir a Coetzee.
Em "Juventude", publicado
por aqui em 2005, as virtudes
são igualmente evidentes. O livro é uma autobiografia romanceada sobre os anos de
provação como aspirante a
poeta em Londres. Aí Coetzee
atinge o ponto máximo na
construção de um tipo de narrador que se tornou sua marca
registrada. A narração é em terceira pessoa, mas tão habilmente mesclada à perspectiva
do protagonista que se dissolve
em seu ponto de vista.
Austeridade controlada
O modo como ele põe isso em
operação já foi devidamente
discutido. Assim como a contenção minuciosa da frase, de
uma austeridade tão controlada que faz Kafka e Beckett soarem alegres e prolixos. Mas de
novo a leitura inclinada apenas
ao entusiasmo ignora os enguiços. Há, em cada um dos breves
capítulos, um excesso de perguntas retóricas que destoa da
armação geral. A reiteração do
recurso sugere a tentativa de
transformá-lo em procedimento narrativo. Mas, além de cansativa ao leitor, a opção sistematiza para além da conta a vida interior de um protagonista
em tumulto.
Elizabeth Costello, o alter
ego que tem feito desfilar em
seus textos mais recentes, presta-se ainda mais à controvérsia.
Que isso não tenha vindo à tona
é também indício do temor reverente dispensado ao autor.
Costello é uma romancista australiana consagrada, ao que tudo indica criada por Coetzee
para preservar uma dimensão
ficcional em seus textos de não-ficção. Em "Vida dos Animais",
de 2002, a capacidade argumentativa e a erudição do autor
são por meio dela postos a serviço de uma causa não exatamente apaixonante: o proselitismo vegetariano. Em "Homem Lento", é também ela que
aparece de repente para resolver o destino do protagonista,
instaurando com ele um debate
metalingüístico que já viveu
dias melhores na literatura (esse ponto não passou em branco: o efeito artificial foi apontado por Sérgio Rodrigues, do site
NoMínimo).
Contam-se nos dedos da mão
os prosadores contemporâneos
com estofo para ombrear Coetzee. Mas são na maioria nomes
de consagração mais antiga, de
lugar mais seguro no cânone,
de obras mais difundidas e postas à prova pela crítica. Neófito
no panteão, o autor sul-africano parece objeto de um zelo
desmedido, como se uma leitura menos pré-formatada pusesse em risco seu lugar. Autores
do porte dele não precisam de
complacência. Que só raras vezes se lembrem disso por aqui é
sinal de que lhe estão negando
o respeito que merece.
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