São Paulo, quinta-feira, 21 de junho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Comentário

Autores do porte de Coetzee não precisam de complacência

No Brasil, romances do escritor sul-africano costumam ser lidos com zelo desmedido

FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A presença de J. M. Coetzee na próxima Flip e o lançamento no Brasil de seu romance "Homem Lento" devem trazê-lo novamente aos holofotes e consolidar a unanimidade estabelecida em torno dele nos últimos anos. Desde a publicação de "Deson- ra" por aqui, no fim de 2000, Coetzee é forte candidato à condição de sumidade literária da vez: no mesmo momento em que passava por uma redescoberta pelos jornalistas, editores e pelas poucas centenas de leitores de praxe, os prêmios de vulto que arrematou (mais um Booker Prize em 1999 e, em 2003, o Nobel) indicaram um caminho seguro aos que procuravam um nome para incensar.
O jeitão esquivo e lacônico, a sólida inserção no mundo acadêmico (publica regularmente no "New York Review of Books"), a origem sul-africana e o acento beckettiano, mesmo nos textos mais políticos, terminam por compor os traços do que aos poucos vai se mostrando um tipo ideal de ídolo literário.
Quem perde com isso é sua obra -ou ao menos sua recepção no Brasil. Ninguém discorda de que "Desonra" é um livro que expõe com nitidez as feridas da África do Sul pós-apartheid. Nem de que o declínio do protagonista, coroado por uma cena em que testemunha o estupro da filha, fixa uma imagem poderosa da violência contemporânea. Mas a leitura predisposta apenas ao elogio tende a passar batido pelas pedras no caminho, das quais pouco ou nada se falou. Um exemplo é a ópera que o personagem central planeja compor. As passagens a esse respeito falam mais das veleidades eruditas do autor e de artifícios de profundidade do que da crise de um professor universitário afastado por assédio sexual. Há ali uma impostação que não orna nem com as necessidades do enredo, nem com a sobriedade fria que se costuma atribuir a Coetzee.
Em "Juventude", publicado por aqui em 2005, as virtudes são igualmente evidentes. O livro é uma autobiografia romanceada sobre os anos de provação como aspirante a poeta em Londres. Aí Coetzee atinge o ponto máximo na construção de um tipo de narrador que se tornou sua marca registrada. A narração é em terceira pessoa, mas tão habilmente mesclada à perspectiva do protagonista que se dissolve em seu ponto de vista.

Austeridade controlada
O modo como ele põe isso em operação já foi devidamente discutido. Assim como a contenção minuciosa da frase, de uma austeridade tão controlada que faz Kafka e Beckett soarem alegres e prolixos. Mas de novo a leitura inclinada apenas ao entusiasmo ignora os enguiços. Há, em cada um dos breves capítulos, um excesso de perguntas retóricas que destoa da armação geral. A reiteração do recurso sugere a tentativa de transformá-lo em procedimento narrativo. Mas, além de cansativa ao leitor, a opção sistematiza para além da conta a vida interior de um protagonista em tumulto.
Elizabeth Costello, o alter ego que tem feito desfilar em seus textos mais recentes, presta-se ainda mais à controvérsia. Que isso não tenha vindo à tona é também indício do temor reverente dispensado ao autor. Costello é uma romancista australiana consagrada, ao que tudo indica criada por Coetzee para preservar uma dimensão ficcional em seus textos de não-ficção. Em "Vida dos Animais", de 2002, a capacidade argumentativa e a erudição do autor são por meio dela postos a serviço de uma causa não exatamente apaixonante: o proselitismo vegetariano. Em "Homem Lento", é também ela que aparece de repente para resolver o destino do protagonista, instaurando com ele um debate metalingüístico que já viveu dias melhores na literatura (esse ponto não passou em branco: o efeito artificial foi apontado por Sérgio Rodrigues, do site NoMínimo).
Contam-se nos dedos da mão os prosadores contemporâneos com estofo para ombrear Coetzee. Mas são na maioria nomes de consagração mais antiga, de lugar mais seguro no cânone, de obras mais difundidas e postas à prova pela crítica. Neófito no panteão, o autor sul-africano parece objeto de um zelo desmedido, como se uma leitura menos pré-formatada pusesse em risco seu lugar. Autores do porte dele não precisam de complacência. Que só raras vezes se lembrem disso por aqui é sinal de que lhe estão negando o respeito que merece.


Texto Anterior: Crítica: Autor vai fundo ao confundir real e ficcional
Próximo Texto: Obras no Brasil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.