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CHINA E RÚSSIA
Chega às livrarias inédito do escritor e jornalista gaúcho
Baú de Josué Guimarães libera crônicas do socialismo
AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Um extraordinário documento histórico e literário
começa a abrir para o público o
baú de inéditos do jornalista e escritor gaúcho Josué Guimarães
(1921-1986). Após quase meio século de sua redação, finalmente
ganha as livrarias "As Muralhas
de Jericó - Memórias de Viagens:
União Soviética e China nos Anos
50" (L&PM/ Instituto Estadual do
Livro do RS).
Ao morrer precocemente, há 15
anos, Guimarães era o legítimo
sucessor de Érico Veríssimo como mais importante romancista
do Rio Grande do Sul e emprestava sua sabedoria a esta Folha como diretor da sucursal regional e
colunista da página 2. "Muralhas", seu primeiro livro, permanecia contudo inédito.
No início de 1952, a política disputava espaço com o jornalismo e
o então vereador pelo PTB vivia
sua primeira "grande aventura"
viajando por trás da chamada
"Cortina de Ferro". Clandestinamente, Guimarães embarcava para participar de uma Conferência
Econômica Internacional em
Moscou para discutir as injustas
relações de comércio no imediato
pós-guerra.
Ao regressar, Guimarães engavetou sua extensa crônica de viagem. Como bom correligionário,
atendia assim a pedidos do presidente Getúlio Vargas, temeroso
este do excessivo entusiasmo que
captou do viajante num jantar no
Palácio do Catete.
Com ares da abertura democrática, em 1982, Josué Guimarães
animou-se a revisitar o texto de
juventude, entregando-o a Ivan
Pinheiro Machado, seu editor.
Planejava voltar à China que tanto
o impressionara e complementar
o livro com novas crônicas. A
morte frustrou o sonhado retorno
e adiou por quase duas décadas a
publicação de seu livro de estréia.
Primeiro de tudo, salta aos
olhos o talento do escritor. Josué é
desde logo um cronista ágil e preciso, que recorre a poucas e certeiras palavras para desenhar personagens, registrar estados de espírito e reconstituir situações incomuns. Meio século passado, suas
sensações ainda saltam da página
com rara vivacidade.
"As Muralhas de Jericó" nos
conduz através de um túnel do
tempo que leva ao apogeu do stalinismo e à aurora da Guerra Fria.
O ceticismo do jovem repórter vai
se erodindo com o avançar de sua
visita guiada pelo bloco socialista.
Guimarães passa por Praga a
caminho da URSS e, embora registre ter sentido "o regime policial", elogia o pluripartidarismo
de fachada. Já em Moscou, cumpre o programa básico de turismo
bolchevique, visitando do Museu
do Kremlin aos estúdios da Mosfilm, com ênfase nas excursões à
Fábrica Stálin e à Fazenda Coletiva Lênin.
O cronista não oculta o espanto
frente ao dinamismo da URSS em
plena reconstrução por meio do
Quinto Plano Quinquenal, centrado na indústria pesada e na
mecanização da agricultura. A
disputa pelas mercadorias que
desaparecem das prateleiras em
Moscou surge antes como prova
de excesso de demanda do que de
escassez de oferta. Não faltam
também elogios ingênuos à aparente "liberdade de culto", à pseudoautonomia político-cultural
das diversas repúblicas e à publicidade maquiada em jornalismo
do "Pravda".
O impacto maior, porém, foi a
pioneira visita a uma China que
"adotou o socialismo (...) há apenas dois anos e meio ". "Nada me
impressionara tanto", reconhece
Guimarães no balanço de sua viagem de cerca de 50 mil quilômetros aéreos, "do que a China e sua
gente".
Surpreso pela ausência em Pequim (mas não na cosmopolita
Xangai) de sinais de miséria, Guimarães destaca que "há ordem, e
a impressão mais forte é de que
todos fazem alguma coisa". A radical reforma agrária catalisa
comparações negativas para o
Brasil. "Não há um palmo de terra
abandonada", comemora.
Nosso homem em Pequim testemunha a longa comemoração
de 1º de Maio, defronte da Porta
da Paz Celestial, a poucos metros
do líder revolucionário Mao Tsé-tung. Talvez fosse ainda possível
defini-lo como "um intelectual
dos mais puros", mas a inquisição
obscurantista da Revolução Cultural (1966-1969) não tardaria.
O relato de Josué Guimarães
carrega hoje evidente acento nostálgico. Lembra uma época de turismo delicado, mesmo o socialista, quando aviões eram veículos
com luxos como salas de leitura e
mesmo a limitada autonomia dos
vôos preparava aos poucos a transição rumo ao desconhecido.
Mas, sobretudo, recupera um
tempo nem tão distante em que
fazer "deste mundo um só" era
uma utopia que exigiria "engenho
e arte", enquanto hoje, alcunhada
de "globalização", representa a
mais pura realidade, forjada meramente por técnica e capital.
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