São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

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Crítica/teatro

Festival assume riscos do experimental

Na liberdade da tentativa e erro, evento de Rio Preto teve boas montagens e manteve sua marca de interferir na cidade

SÉRGIO SALVIA COELHO
ENVIADO ESPECIAL A RIO PRETO

Hamlet entra em cena e escreve a giz, na parede podre de sua cela-nação, a data da apresentação. Está aberta a aposta: Shakespeare deverá provar ser um espelho de qualquer época. E mesmo que venha da Venezuela essa provocação sarcástica contra a caricatura no poder, ninguém da América Latina pode rir despreocupado.
O Teatro del ContraJuego está há 20 anos na vanguarda da insolência. Dirigida por Orlando Arocha, tendo como braço direito o ator-dramaturgo-diretor brasileiro Ricardo Nortier, essa sua leitura de Hamlet vale como um cartão de visitas das estratégias da companhia.
Pois bem: visando o público geral, a companhia não se preocupa com o caviar das sutilezas psicológicas. Arocha escolhe ser abertamente popular, da trilha de salsas e rumbas ao figurino que parodia a alta-costura, e esse sem-cerimônia autoriza cada um na platéia a fazer sua própria associação com seus pingüins de geladeira.
O protagonista Nortier, com um cinismo disfarçado de bonomia, entrecortado por chiliques de criança e melancolias que lembram o quanto é séria a questão da qual se debocha, remete muitas vezes Luis Fernando Guimarães. Ludwig Pineda, um rei Cláudio que se deleita na cafonice, barbicha, ray-ban e ouro no pescoço, é um sósia do cantor Falcão; enquanto que a Ofélia de Diana Peñalver é uma Courtney Love que se afoga na sórdida pia do cenário.
Valorizando como poucos a comicidade de Polônio, Julio Bouley domina as pausas pantalonescas, e seu coveiro chega ao hilário despudor de Chaves (o comediante mexicano, não seu homônimo presidente). Por outro lado, a evocação do fantasma -vento nas cortinas- é sofisticada, assim como a decisão de se cortar o mínimo da peça. Sem se levar muito a sério, o Hamlet do Teatro Del ContraJuego serve Shakespeare no que ele tem de mais contemporâneo: sua insolência.
A atitude abertamente lúdica acaba sintetizando bem o que foi o Sétimo Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. Na sexta feira, ainda com a expectativa das apresentações de grupos tão importantes como o Teatro Oficina (com a remontagem de "Vento Forte para um Papagaio Subir") e o Grupo Galpão, com a aguardada "Pequenos Milagres", dirigida por Paulo de Moraes; além da ilustre presença de Anatoli Vassíliev, da Escola de Arte Dramática de Moscou, o festival se responsabilizou por eventos seminais para o teatro brasileiro.
Consagrou os franceses da CIE 111, com seu instigante "Plan B"; inquietou o público com a desolação de "Braakland", da inovadora Compagnie Dakar, da Holanda; e manteve sua marca de interferir no cotidiano da cidade

"Não-Lugar"
Como toda aposta aberta, o Festival deu visibilidade a experiências menos bem-sucedidas, como a declamativa "Medea" do Grupo Atalaya, da Espanha, e a "Galeria 17", da Boa Companhia de Campinas, que se atolou em uma kafkiana autocontemplação.
Na liberdade da tentativa e erro, mais eficiente foi o formato do "Não-Lugar", a partir das 23h, que ofereceu desde os poucos minutos de alta tecnologia do "Vídeotango" de Otávio Donasci, até o blefe dadaísta "Falso Espetáculo", de Elisa Ohtake, que parodia as últimas tendências das artes cênicas contando com a cumplicidade da platéia.
O FIT, assim, segue seu rumo e se consolida como um dos mais instigantes festivais do Brasil.


O crítico SÉRGIO SALVIA COELHO e a repórter-fotográfica LENISE PINHEIRO viajaram a convite da organização do festival


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