São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

A São Paulo de Paulo Emílio


Exumada das páginas de um caderno do espólio literário do autor, "Cemitério" respira vida e vigor ficcional


A CUIDADOSA reedição da obra de Paulo Emílio Sales Gomes (1916-77) começou pela prosa de ficção, tardia, breve, mas nada menor. Depois de "Três Mulheres de Três PPPês", saem agora, reunidas no segundo volume, uma novela, "Cemitério", e uma miniatura dramática militante, "Destinos", ambas inéditas, ambas vincadas pela experiência política brasileira nos anos 30. Esta última foi concebida e encenada no calor da hora, entre 1936 e 1937, período que Paulo Emílio amargou no Paraíso, um presídio político paulistano; "Cemitério" foi escrita muito depois, sob outra ditadura, a dos milagreiros anos 70, mas gravita em torno da mesma época de exaltado confronto ideológico.
Exumada das páginas de um caderno do espólio literário do autor, "Cemitério" respira vida e vigor ficcional. A experiência biográfica de quem participou (ativa e precocemente) da história política da esquerda no país, o refinamento intelectual do ensaísta, a ironia machadiana do autor que se esconde sob heróis convencionais e medianos ressurgem, desta vez, no desabafo paranóico de um anônimo dublê de copidesque e contínuo. Encarregado pelo picareta dono de uma editora tanto de entregar pacotes, quanto de ler originais, o baiano anônimo, clandestino na locomotiva que puxa os vagões vazios, vê-se em palpos de aranha quando aprova a edição de uma novela histórica -a "Cemitério" do título- em que os figurões da querela constitucionalista e suas polícias políticas dividem protagonismo e mau cheiro.
Quando os ânimos indignados dos sobreviventes mencionados se acirram e o pretenso autor (J. de Costas) faz fumaça, o contínuo-editor tem atribuída a ele a autoria do texto satírico, convertendo-se em potencial alvo da parentalha ofendida. O centro de sua vida (um pé inchado há 20 anos; Rosália, a filha adulta que sabe não ser sua; Claudina, a mulher que em sua casa veste as calças) se desloca para um caderno (para a escrita, portanto) em que tenta entender a trama dos acontecimentos, multiplicando versões e esmiuçando os papéis desempenhados pelos personagens da época, dos interventores aos torturadores, dos militantes presos aos integralistas, apavorado com um eventual processo.
O mecanismo formal que põe a novela em movimento é este tropel de testemunhos, "deslizamento de vozes" (Roberto Schwarz) e registros (inclusive o do livro dentro do livro) contra o baixo contínuo do pé dolorido do humilde narrador. Inclui até o próprio Paulo Emílio, personagem de si mesmo entrevistado por seu narrador-personagem, à procura (satírica) de uma São Paulo exaltada e (utópica) do povo. O efeito final equivale a um preciso obelisco-espinho cravado no orgulho mistificador das elites, a empulhação de noves-de-julhos e outros "bodes exultórios", acompanhado da constatação, amarga e lúcida para o militante, do desencontro com o povo: "é procurando que o povo vai existindo e quando existir mesmo não haverá precisão de procura".

CEMITÉRIO


Autor: Paulo Emílio Sales Gomes
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 38 (152 págs.)
Avaliação: ótimo



Texto Anterior: Deus no banco dos réus
Próximo Texto: Crítica/teatro: Festival assume riscos do experimental
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.