São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

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Crítica/coletâneas

Textos de Bonassi alternam denuncismo e o gosto da ostentação de marginalidade

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acabam de sair dois livros de Fernando Bonassi. "Violência e Paixão" é identificado na ficha catalográfica como um volume de contos. "A Boca no Mundo: 100 Crônicas de Fernando Bonassi" reúne textos escritos para a Ilustrada, entre 2002 e 2006. Mas é tão difícil distingui-los entre si -a não ser pela maior liberdade de extensão dos textos do primeiro livro em comparação com a regularidade do número de toques dos que saíram no jornal- quanto supor adequada a classificação de gênero atribuída a eles.
Em ambos, há farto emprego da figura da ironia, que nega o que parece afirmar, mas o procedimento estilístico mais recorrente é a acumulação reiterativa com repetição do termo inicial das frases em seqüência. Por exemplo: "Rio quando cago. Rio quando mijo. Rio quando o sol aparece, rio quando fica escondido" -e assim por diante, até a equivocação do termo "rio": "Rio porque sim, rio porque não. Rio de Janeiro, fevereiro ou março". O método é empregado à exaustão, já transformado em fórmula, como nas letras dos Titãs. No mesmo exemplo, o uso de calão já fica demonstrado, assim como as frases curtas, telegráficas, as construções paratáticas e a pouca ação.

Estereótipo
O que sucede já está implícito desde o início no estereótipo que se escande. Mesmo o bizarro, o "freak", se associa mais ao vulgarmente suposto do que à observação particular. Ao contrário do gênero do conto, portanto, a composição não sofre evento nem tensão: é apenas desfile tipológico.
O efeito é reforçado por outro procedimento largamente utilizado: a deformação proverbial. "Pão que o diabo amassou" torna-se, para ficar num exemplo entre inúmeros, "bichos que o diabo do empresário amassou".
Por referir maciçamente a miséria, os textos sugerem denuncismo; mas oscilam entre ele e o gosto da ostentação de marginalidade: "Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda?!" Os poderosos não conhecem "satisfação e requinte". Como a composição escala lugares-comuns, a descrição da vida do pobre se faz por metonímia, inventário de clichês ("cesta básica", "assassino profissional", "desempregado", "fome", "jesus", "oficial de justiça" etc.).
Às vezes, o estereótipo, que já é amplificação, sofre uma segunda demão, a ponto de o horror ficar cômico, tenha ou não ocorrido: "Um pai esquarteja o cão que mordeu sua filha. Uma mãe dá machadadas na cabeça do filho viciado". Fosse Tarantino o autor dessas linhas, a consciência da irrupção do cômico no exagero do horror seria ela própria evidenciada como desconstrução de gênero. No caso de Bonassi, como não há humor, o horror vira afetação ridícula, a maldade vira canastrice.

Clichês da MPB
Mas se os contos não são contos, pois lhes falta estrutura de ação, tampouco as crônicas são crônicas, por falta de senso de observação particular, substituído pelo gosto dedutivo dos estereótipos. Seriam crônica policial se lidassem mais com as circunstâncias técnicas dos casos, mas se detêm nos clichês da MPB e da notícia de jornal popularesco: "Tá lá um corpo estendido no chão". Seriam colunismo social da baixa sociedade se não fossem genéricos e programáticos demais, como um "exercício de lembrar as piores coisas". Poderiam ser exemplos do antigo gênero do "retrato moral", mas lhes falta completamente o estudo de caráter. Reduzem-se a descrições de tipos e, portanto, a uma pitoresca ou anedótica urbana.
A epígrafe de "Violência e Paixão" postula realismo ao afirmar que o "livro não protege ninguém da vida (nem de suas conseqüências)". Mas não relata a vida além do que dela se pode apreender através de idéias preconcebidas. Ou seja, há nos escritos de Bonassi vários modos de estreitamento da perspectiva realista que pleiteia para si:
1. Folclorização pitoresca da pobreza, variante da cosmética da fome: a ausência do glamour do morro carioca é substituída pela perversidade desvairada;
2. Atribuição da desorganização social e humana a causa individual, com o agravante de a causa ser transformada em culpa cristã. "- Você é burro, Devanir" -revela a santa. Assim o Brasil é o que é porque os brasileiros são estúpidos;
3. Cumplicidade com a violência, amplificada com escândalo até o amortecimento; em vez de análise do real, anúncio do mundo cão;
4. Esquematismo social conservador ("bacanas" versus "fodidos"), agravado por um romantismo banal que excita o desprezo contra o sujeito a quem falta o sentido da revolta ou do crime.
Em suma: nos escritos de Bonassi, a razão da denúncia se esvai no horror à razão.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)

VIOLÊNCIA E PAIXÃO


Autor: Fernando Bonassi
Editora: Scipione
Quanto: R$ 22,90 (80 págs.)
Avaliação: ruim


A BOCA NO MUNDO: 100 CRÔNICAS DE FERNANDO BONASSI

Autor: Fernando Bonassi
Editora: Novo Século
Quanto: R$ 35 (320 págs.)
Avaliação: ruim



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