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Crítica/coletâneas
Textos de Bonassi alternam denuncismo e o gosto da ostentação de marginalidade
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Acabam de sair dois livros de Fernando Bonassi. "Violência e Paixão" é identificado na ficha catalográfica como um volume de
contos. "A Boca no Mundo: 100
Crônicas de Fernando Bonassi" reúne textos escritos para a
Ilustrada, entre 2002 e 2006.
Mas é tão difícil distingui-los
entre si -a não ser pela maior
liberdade de extensão dos textos do primeiro livro em comparação com a regularidade do
número de toques dos que saíram no jornal- quanto supor
adequada a classificação de gênero atribuída a eles.
Em ambos, há farto emprego
da figura da ironia, que nega o
que parece afirmar, mas o procedimento estilístico mais recorrente é a acumulação reiterativa com repetição do termo
inicial das frases em seqüência.
Por exemplo: "Rio quando cago. Rio quando mijo. Rio quando o sol aparece, rio quando fica
escondido" -e assim por diante, até a equivocação do termo
"rio": "Rio porque sim, rio porque não. Rio de Janeiro, fevereiro ou março". O método é
empregado à exaustão, já transformado em fórmula, como nas
letras dos Titãs. No mesmo
exemplo, o uso de calão já fica
demonstrado, assim como as
frases curtas, telegráficas, as
construções paratáticas e a
pouca ação.
Estereótipo
O que sucede já está implícito
desde o início no estereótipo
que se escande. Mesmo o bizarro, o "freak", se associa mais ao
vulgarmente suposto do que à
observação particular. Ao contrário do gênero do conto, portanto, a composição não sofre
evento nem tensão: é apenas
desfile tipológico.
O efeito é reforçado por outro procedimento largamente
utilizado: a deformação proverbial. "Pão que o diabo amassou"
torna-se, para ficar num exemplo entre inúmeros, "bichos
que o diabo do empresário
amassou".
Por referir maciçamente a
miséria, os textos sugerem denuncismo; mas oscilam entre
ele e o gosto da ostentação de
marginalidade: "Tudo o que eu
gosto é ilegal, imoral ou engorda?!" Os poderosos não conhecem "satisfação e requinte".
Como a composição escala lugares-comuns, a descrição da
vida do pobre se faz por metonímia, inventário de clichês
("cesta básica", "assassino profissional", "desempregado",
"fome", "jesus", "oficial de justiça" etc.).
Às vezes, o estereótipo, que já
é amplificação, sofre uma segunda demão, a ponto de o horror ficar cômico, tenha ou não
ocorrido: "Um pai esquarteja o
cão que mordeu sua filha. Uma
mãe dá machadadas na cabeça
do filho viciado". Fosse Tarantino o autor dessas linhas, a
consciência da irrupção do cômico no exagero do horror seria ela própria evidenciada como desconstrução de gênero.
No caso de Bonassi, como não
há humor, o horror vira afetação ridícula, a maldade vira canastrice.
Clichês da MPB
Mas se os contos não são contos, pois lhes falta estrutura de
ação, tampouco as crônicas são
crônicas, por falta de senso de
observação particular, substituído pelo gosto dedutivo dos
estereótipos. Seriam crônica
policial se lidassem mais com
as circunstâncias técnicas dos
casos, mas se detêm nos clichês
da MPB e da notícia de jornal
popularesco: "Tá lá um corpo
estendido no chão". Seriam colunismo social da baixa sociedade se não fossem genéricos e
programáticos demais, como
um "exercício de lembrar as
piores coisas". Poderiam ser
exemplos do antigo gênero do
"retrato moral", mas lhes falta
completamente o estudo de caráter. Reduzem-se a descrições
de tipos e, portanto, a uma pitoresca ou anedótica urbana.
A epígrafe de "Violência e
Paixão" postula realismo ao
afirmar que o "livro não protege ninguém da vida (nem de
suas conseqüências)". Mas não
relata a vida além do que dela se
pode apreender através de
idéias preconcebidas. Ou seja,
há nos escritos de Bonassi vários modos de estreitamento da
perspectiva realista que pleiteia para si:
1. Folclorização pitoresca da
pobreza, variante da cosmética
da fome: a ausência do glamour
do morro carioca é substituída
pela perversidade desvairada;
2. Atribuição da desorganização social e humana a causa individual, com o agravante de a
causa ser transformada em culpa cristã. "- Você é burro, Devanir" -revela a santa. Assim o
Brasil é o que é porque os brasileiros são estúpidos;
3. Cumplicidade com a violência, amplificada com escândalo até o amortecimento; em
vez de análise do real, anúncio
do mundo cão;
4. Esquematismo social conservador ("bacanas" versus "fodidos"), agravado por um romantismo banal que excita o
desprezo contra o sujeito a
quem falta o sentido da revolta
ou do crime.
Em suma: nos escritos de Bonassi, a razão da denúncia se esvai no horror à razão.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Máquina de Gêneros" (Edusp)
VIOLÊNCIA E PAIXÃO
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Scipione
Quanto: R$ 22,90 (80 págs.)
Avaliação: ruim
A BOCA NO MUNDO: 100 CRÔNICAS DE FERNANDO BONASSI
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Novo Século
Quanto: R$ 35 (320 págs.)
Avaliação: ruim
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