São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2006

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Os contrastes de Varda

Retrospectiva de fôlego no CCBB revisita mais de meio século do olhar feminista da belga Agnès Varda, cineasta ligada ao grupo original da nouvelle vague

Divulgação
No curta "Os Panteras Negras" (1968), Varda registra a movimentação do grupo na Califórnia, em busca da atenção dos americanos e das consciências negras


CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Do real ao imaginário, o olhar da diretora de origem belga Agnès Varda, 78, sempre transitou com singularidade. Ligada ao grupo original da nouvelle vague que emergiu no fim dos anos 50, seu cinema preexistiu e subsistiu ao movimento.
Além de cineasta, mulher e feminista, Varda construiu uma obra na qual se dedicou a captar de modo surpreendente desde a política ("Os Panteras Negras") até a intimidade (a vida de seu marido e também cineasta, Jacques Demy, em "Jacquot de Nantes").
Esse olhar feminino e feminista, no entanto, não se prende a um discurso sobre a condição das mulheres. Como ressalta a diretora, seu desejo maior sempre foi compartilhar emoções através da reinvenção do real que o cinema permite. Dois de seus trabalhos mais conhecidos, "Cléo de 5 às 7" e "As Duas Faces da Felicidade", integram uma retrospectiva de fôlego que reúne 18 longas e 15 curtas feitos ao longo de mais de 50 anos, a partir de amanhã, no CCBB de São Paulo.
De Paris, por telefone, onde prepara uma exposição para a Fundação Cartier, Varda falou à Folha sobre seus filmes, sua visão de cinema e sua nova fase como artista contemporânea.  

FOLHA - A senhora realizou seu primeiro filme em 1954. O que mudou em sua concepção de cinema nestes mais de 50 anos?
AGNÈS VARDA
- No meu desejo de cinema nada mudou muito. Esse desejo foi sempre de encontrar novas formas de narrar, ou seja, não apenas ilustrar uma história em imagens. O que me interessa no cinema, antes do roteiro ou nos diálogos, é pensar uma estrutura do relato. Depois, deixar espaço para descobertas. Ao longo da minha carreira, realizei ficções, documentários, curtas e longas, mas, em todos, tentei encontrar a duração que correspondesse às necessidades da narrativa.

FOLHA - Seu trabalho é habitualmente identificado ao da geração da nouvelle vague. A senhora se considera integrante do mesmo clã de Godard, Truffaut e Rohmer?
VARDA
- Eu me sinto independente em relação a eles. Primeiro, porque eu nunca fui crítica, nem ambicionei produzir uma teoria do cinema. Segundo, porque nunca me interessei em ter uma visão psicológica, como a que predomina nos filmes de Truffaut e de Rohmer. O que sempre busquei foi reinventar a realidade, inventar uma nova realidade pelo cinema.

FOLHA - E como lida com essa reinvenção da realidade quando a senhora realiza documentários?
VARDA
- Nos documentários, eu estou a serviço do tema, me transformo em serva das pessoas e das histórias, estou lá para ajudá-las, estimulá-las a se expressar. Já nas ficções, claro, eu ocupo o lugar de artista e reinvento de acordo com minha visão expressiva. São duas atitudes diferentes enquanto cineasta e é por isso que eu amo fazer as duas. Sempre que faço uma ficção em seguida volto ao documentário, porque este é uma escola de modéstia. Eu me obrigo a voltar a essa escola periodicamente.

FOLHA - Para limpar o olhar?
VARDA
- Exatamente. Bela fórmula! Pois a chave do cinema são os outros, não meu umbigo. Apesar de eu ter feito inúmeros filmes autobiográficos, não se trata de uma fixação narcisista. A cineasta Varda existe nos meus filmes, algumas vezes ouve-se minha voz, estou lá na primeira pessoa, mas eu não estou neles para falar de mim.

FOLHA - Em trabalhos como "Jacquot de Nantes", "Tio Yanco" e, sobretudo, "Ulisses", percebe-se sua atenção ao trabalho da memória. Fazer cinema é também, para a senhora, rememorar?
VARDA
- Acho que isso decorre do fato de eu, pessoalmente, ser uma desmemoriada, tenho uma péssima memória, infelizmente. "Ulisses" é, mais que tudo, o reflexo disso e um dos meus trabalhos favoritos. Trata-se ali de uma memória não-guardada e no filme eu exploro essa incapacidade minha e dos personagens de fixar algo. Mas o cinema não existe apenas para lembrar e, sim, para indagar, construir uma imagem da memória, buscar lembranças onde elas se esconderam.

FOLHA - A senhora acredita em cinema feminino ou em um olhar feminino no cinema?
VARDA
- Sem dúvida. Eu não sou apenas cineasta, sou cineasta, mulher e feminista. Não vejo da mesma maneira que os homens nem desejo transmitir emoções do mesmo modo que eles. Não se trata apenas dos olhar, mas de uma escolha. E a escolha é: o que você quer representar da realidade? Quando faço escolhas, a pergunta que me orienta é: o que quero partilhar? Descobertas, conhecimentos, beleza em suma.

FOLHA - A senhora está preparando uma instalação que será aberta na Fundação Cartier, nos próximos dias. Como surgiu seu interesse por esse modo de expressão da arte contemporânea?
VARDA
- O projeto me interessou porque se trata de outra forma de compartilhar. O formato de instalação permite explorar as três dimensões, o público entra nelas, toca nos objetos, muda-os de posição e isso me interessa bastante.

FOLHA - Esse trabalho se assemelha à exposição recente em museus do universo de cineastas, tais como a de Almodóvar na Cinemateca Francesa e as instalações que Godard produziu para a mostra no Centro Georges Pompidou?
VARDA
- O que está ocorrendo é que cineastas estão produzindo instalações nas quais eles mostram filmes de uma outra maneira. No meu caso, trata-se de uma obra diferente disso. Não usei restos de meus filmes. Quis explorar as possibilidades de outros dispositivos. Esse trabalho se aproxima do de cineasta, mas trata-se de outra abordagem, de outra realidade na relação com o público. Ao me dedicar a isso retorno àquilo que mais admiro no cinema, que é partilhar reações, só que desta vez de uma maneira muito mais próxima.


MOSTRA AGNÈS VARDA - O MOVIMENTO PERPÉTUO DO OLHAR
Quando:
a partir de amanhã (sessão de abertura para convidados) a 10/9
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, Centro, SP, tel. 0/xx/11/3113-3651)
Quanto: R$ 4 e R$ 2 (estudantes)


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