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NELSON ASCHER
Impasses da intelectualidade
Escolhas político-ideológicas prévias tendem a influenciar opções profissionais
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UMA SOCIEDADE moderna
abriga concomitantemente
alguns consensos de base e
um leque infinito de opiniões.
Quando a sociedade funciona e é estável, os consensos, que não nasceram da noite para o dia, mas resultam, cumulativamente, das tentativas e erros de diversas gerações, têm
sua inércia, não são fáceis de alterar.
Estes dizem respeito ao modo como
a sociedade se sustenta e governa,
como ela resolverá conflitos inevitáveis, o que nela é permissível ou não
e assim por diante.
Tais acordos, por sua vez, não apenas permitem, como estimulam a
existência de todo tipo de opiniões
acerca dos mais variados assuntos.
Essa liberdade que, mais do que
possível, é necessária para seu bom
funcionamento, realiza-se tanto
melhor quanto mais opiniões houver e quanto mais sem entraves elas
competirem entre si.
Não que os consensos de base não
possam ser questionados. Ocorre
que, para bem ou mal, aplica-se a
eles a lógica do "não se mexe em time que está ganhando". Os principais acordos políticos e econômicos
que subjazem a essa sociedade, seu
caráter democrático-representativo, digamos, ou sua aceitação do
mercado (em oposição ao planejamento central) enquanto árbitro
entre a oferta e procura, vivem sendo esmiuçados, mas é quase impossível, em condições de normalidade,
persuadir a maioria a permitir mudanças relevantes.
Em ambientes assim, o acaso
(aliado à liberdade) leva, em princípio, todos os subgrupos sociais, pelo
menos aqueles que, ao contrário dos
partidos ou das religiões, não se organizam em torno de certas opiniões que excluem as demais, a refletirem em seu interior o leque
mais amplo de opiniões possíveis.
Subdividindo o todo em suas partes,
espera-se, assim, encontrar em grupos como o dos engenheiros, médicos ou cozinheiros uma amostragem generosa das orientações políticas e religiosas, das nuances de
gosto cultural etc.
Se isso não sucede, o estreitamento opinativo de tal ou qual grupo se
explica quase sempre pela correlação alta que às vezes surge entre
aquele e algum outro organizado em
torno de opiniões. O exemplo clássico seria o da "ética protestante" predispondo seus seguidores a ingressarem nas camadas afluentes. Não
há dúvida de que escolhas político-ideológicas prévias tendem a influenciar opções profissionais ou de
carreira. Além disso, em países de
imigração, as sucessivas ondas de
recém-chegados costumam, cada
qual, ocupar desproporcionalmente, se bem que só por algum tempo,
certos ramos e atividades, em geral
as que estavam abertas para eles ou
surgindo quando chegaram.
É difícil definir ou circunscrever a
intelectualidade, ainda mais porque
é de sua natureza transpor continuamente limites que pareciam definitivos. Ela, no entanto, existe há
cerca de dois séculos, como um elemento claramente reconhecível das
sociedades modernas. Os intelectuais, sob uma ou outra forma, estavam presentes antes, mas é só recentemente que se converteram
num grupo distinto. Tendo em vista
a diversidade de suas atividades e
interesses, seria lícito esperar deles
semelhante pluralidade de opiniões. O que surpreende, porém, é
quão monolíticas estas são entre
eles. Como chegamos a essa situação?
Ela decorre tanto da profissionalização quanto da organização cada
vez mais racional dos intelectuais e
seu trabalho. Universidades, academias literárias, fundações, ministérios e uma quantidade crescente de
instituições, organizações, grêmios,
empregadores e fontes de renda
vêm transformando a intelectualidade em algo mais coerente, influente e mesmo viável. Tudo isso,
no entanto, requer um estrato administrativo, ou seja, uma burocracia
que, afinal, mostra-se capaz, entre
os intelectuais, de tornar hegemônicos seus pontos de vista.
Para piorar, não há coincidência
necessária entre os talentos e habilidades propriamente intelectuais e
os administrativos, de modo que,
subvertendo o que o meio teria de
meritocrático, seus membros mais
medíocres se encontram não raro
em posições que lhes permitem liderar (ou calar) colegas talentosos.
Aqueles que descobrem suas limitações tarde demais para mudar de ramo, acabam, para compensá-las,
tornando-se burocratas de sindicatos e uniões, tomando o poder em
publicações, fundações etc.
Não obstante todo o descrito acima ser mais ou menos inevitável,
também é verdade que a hegemonia,
nesse grupo, de uma espécie de pensamento único o torna menos e menos eficiente em seus afazeres específicos, acarretando, aos poucos, a
perda de credibilidade e conseqüente desmoralização. Não há solução
garantida para o impasse, mas a desorganização sistemática da intelectualidade, bem como a delegação
das tarefas administrativas a tecnocratas não-intelectuais são remédios que mereceriam ser testados.
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