São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2006

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NELSON ASCHER

Impasses da intelectualidade


Escolhas político-ideológicas prévias tendem a influenciar opções profissionais

UMA SOCIEDADE moderna abriga concomitantemente alguns consensos de base e um leque infinito de opiniões. Quando a sociedade funciona e é estável, os consensos, que não nasceram da noite para o dia, mas resultam, cumulativamente, das tentativas e erros de diversas gerações, têm sua inércia, não são fáceis de alterar. Estes dizem respeito ao modo como a sociedade se sustenta e governa, como ela resolverá conflitos inevitáveis, o que nela é permissível ou não e assim por diante.
Tais acordos, por sua vez, não apenas permitem, como estimulam a existência de todo tipo de opiniões acerca dos mais variados assuntos. Essa liberdade que, mais do que possível, é necessária para seu bom funcionamento, realiza-se tanto melhor quanto mais opiniões houver e quanto mais sem entraves elas competirem entre si.
Não que os consensos de base não possam ser questionados. Ocorre que, para bem ou mal, aplica-se a eles a lógica do "não se mexe em time que está ganhando". Os principais acordos políticos e econômicos que subjazem a essa sociedade, seu caráter democrático-representativo, digamos, ou sua aceitação do mercado (em oposição ao planejamento central) enquanto árbitro entre a oferta e procura, vivem sendo esmiuçados, mas é quase impossível, em condições de normalidade, persuadir a maioria a permitir mudanças relevantes.
Em ambientes assim, o acaso (aliado à liberdade) leva, em princípio, todos os subgrupos sociais, pelo menos aqueles que, ao contrário dos partidos ou das religiões, não se organizam em torno de certas opiniões que excluem as demais, a refletirem em seu interior o leque mais amplo de opiniões possíveis. Subdividindo o todo em suas partes, espera-se, assim, encontrar em grupos como o dos engenheiros, médicos ou cozinheiros uma amostragem generosa das orientações políticas e religiosas, das nuances de gosto cultural etc.
Se isso não sucede, o estreitamento opinativo de tal ou qual grupo se explica quase sempre pela correlação alta que às vezes surge entre aquele e algum outro organizado em torno de opiniões. O exemplo clássico seria o da "ética protestante" predispondo seus seguidores a ingressarem nas camadas afluentes. Não há dúvida de que escolhas político-ideológicas prévias tendem a influenciar opções profissionais ou de carreira. Além disso, em países de imigração, as sucessivas ondas de recém-chegados costumam, cada qual, ocupar desproporcionalmente, se bem que só por algum tempo, certos ramos e atividades, em geral as que estavam abertas para eles ou surgindo quando chegaram.
É difícil definir ou circunscrever a intelectualidade, ainda mais porque é de sua natureza transpor continuamente limites que pareciam definitivos. Ela, no entanto, existe há cerca de dois séculos, como um elemento claramente reconhecível das sociedades modernas. Os intelectuais, sob uma ou outra forma, estavam presentes antes, mas é só recentemente que se converteram num grupo distinto. Tendo em vista a diversidade de suas atividades e interesses, seria lícito esperar deles semelhante pluralidade de opiniões. O que surpreende, porém, é quão monolíticas estas são entre eles. Como chegamos a essa situação?
Ela decorre tanto da profissionalização quanto da organização cada vez mais racional dos intelectuais e seu trabalho. Universidades, academias literárias, fundações, ministérios e uma quantidade crescente de instituições, organizações, grêmios, empregadores e fontes de renda vêm transformando a intelectualidade em algo mais coerente, influente e mesmo viável. Tudo isso, no entanto, requer um estrato administrativo, ou seja, uma burocracia que, afinal, mostra-se capaz, entre os intelectuais, de tornar hegemônicos seus pontos de vista.
Para piorar, não há coincidência necessária entre os talentos e habilidades propriamente intelectuais e os administrativos, de modo que, subvertendo o que o meio teria de meritocrático, seus membros mais medíocres se encontram não raro em posições que lhes permitem liderar (ou calar) colegas talentosos. Aqueles que descobrem suas limitações tarde demais para mudar de ramo, acabam, para compensá-las, tornando-se burocratas de sindicatos e uniões, tomando o poder em publicações, fundações etc.
Não obstante todo o descrito acima ser mais ou menos inevitável, também é verdade que a hegemonia, nesse grupo, de uma espécie de pensamento único o torna menos e menos eficiente em seus afazeres específicos, acarretando, aos poucos, a perda de credibilidade e conseqüente desmoralização. Não há solução garantida para o impasse, mas a desorganização sistemática da intelectualidade, bem como a delegação das tarefas administrativas a tecnocratas não-intelectuais são remédios que mereceriam ser testados.


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