São Paulo, sábado, 21 de agosto de 2010

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CRÍTICA POESIA

Reedição traz poesia mística de Tolentino

Record reedita "As Horas de Katharina", do poeta Bruno Tolentino (1940-2007), prêmio Jabuti de 1995

VINICIUS TORRES FREIRE
COLUNISTA DA FOLHA

Bruno Tolentino era um desconhecido quando publicou em 1994 "As Horas de Katharina", logo depois de voltar ao Brasil. Vivera quase três décadas na Europa e editara três livros obscuros de poesia. Ficaria notório ao travar discussões desaforadas com os partidos predominantes nas letras paulistas, como os concretistas e críticos da USP.
O livro, Prêmio Jabuti de poesia em 1995, acaba de ser reeditado. Continua quase ignorado pela crítica, mas Tolentino ganhou um círculo fervoroso de admiradores, que o têm na conta de poeta maior da língua portuguesa.
O assunto do livro é a memória mística de uma nobre nascida em 1861, encerrada ainda jovem num convento das carmelitas descalças, explica o autor no proêmio dos 166 poemas.
Katharina passa pelos tormentos da renúncia do mundo, reflete sobre o caminho tortuoso da conversão e da aceitação do sacrifício; contempla obsessivamente os mistérios da fé.
Mas Katharina "poderia ser com certeza qualquer um desses inconfessos filhos que Deus ama e reclama", escreve Tolentino, que teria sido monge não fosse a exigência do celibato, disse uma vez.
Em pleno século do ultramundanismo, Tolentino decidiu então encarnar a voz de uma freira que relata uma típica paixão mística em canções feitas de redondilhos, em sonetos e outros formatos da tradição do verso. O projeto é estranho o bastante para ser interessante. Mas suas ideias religiosas são fantasmas anacrônicos.
Suas formas poéticas são esqueletos em que foram rebocadas massas de banalidades num tom em que o sacro tropeça no cômico, em que a linguagem elevada e sublime se mistura de modo destrambelhado à fala cotidiana, como se Roberto Carlos tentasse encarnar Rainer Maria Rilke com traços de Teixeirinha.
O livro é repleto de referências a poetas e místicos como os santos João da Cruz e Teresa de Ávila, fundadores dos carmelitas descalços, que pregavam o retorno a um monasticismo rigoroso.
Os santos, porém, viviam os dramas reais da Reforma católica, quando a Igreja procurava um rumo, abalada pelos protestantes e pelo racionalismo. João da Cruz chegou a ser torturado pela ordem que procurava reformar. Seus poemas sobre a "noite escura da alma" refletem as dúvidas do período de provações. "As Horas de Katharina" macaqueia um drama espiritual do século 16.
Os textos ficam entre o narrativo ou descritivo tediosos, entremeados de metáforas batidas. O recurso às formas da tradição quase não passa de um modo de cortar o "raciocínio culto" do poeta em linhas mais ou menos curtas (não são bem versos).
Há um excesso de "enjambements"; muitos hiatos e cacófatos de doer no ouvido. O ritmo é pedregoso por ser inepto. Aas tentativas de variações timbrísticas são atropeladas por uma sucessão de rimas involuntariamente cômicas de tão vulgares. Leia-se o poema "Via Crucis", ao lado. Katharina compara de modo juvenil-blasfemo o início de seu claustro à paixão de Jesus num tom em que as rimas em "idade" soam a fofocas de comadres.
Há pior. Aqui e ali se "tece uma nova aurora", aparecem "rosas do fugaz", "nuvens cálidas", "opalas lânguidas". Se dá vontade de rir com "lei nenhuma, aqui se cabe/ num código de Hamurabi", leia-se "Ó Santa Escolástica,/ irmã de São Bento,/ Que horrenda ginástica/ o arrependimento/ segundo o sagrado/ concílio de Trento." Ou "a coisa inanimada,/ longe ou perto,/ tardinha ou madrugada,//é sempre igual a si./ A criatura não./ O ser é uma emoção./ Eu sou feita de tudo o que senti."
Enfim, como diz o poeta em "E a ratoeirazinha", em autoironia involuntária: "...Ó fingida/ alma minha apaixonada,/ muito cuidadinho a cada/ nova sílaba sofrida".


AS HORAS DE KATHARINA

AUTOR Bruno Tolentino
EDITORA Record
QUANTO R$ 54,90 (400 págs.)
AVALIAÇÃO ruim




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