São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2011

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Tracey Emin

FERNANDA TORRES

Violentamente feminina, mas sem ranço feminista ou enganos de igualdade, Emin peca com volúpia e ironia.

Em 1999, passando por uma galeria de arte em Nova York, li um nome que me era indiferente escrito na porta de entrada: Tracey Emin, seguido pelo título "Every Part of Me's Bleeding".
Entrei. "My Bed", uma cama de casal com lençóis revirados sobre um colchão manchado, ocupava o centro da exibição. Entre objetos e escritos, dois quadros. No primeiro, um teste positivo de gravidez; no outro, dois tampões da primeira menstruação da artista após o aborto.
Fui acometida por um pudor incômodo diante de tal intimidade: "Será isso arte?". O efeito emocional era inegável: a comoção teatral, o susto assombrado com a ferocidade de fêmea da turca inglesa.
O quarto continha o relicário do êxtase e do sofrimento de alguém. Textos sublinhavam a sexualidade das juras e a frustração de não transmitir a ninguém o legado da nossa miséria. O que importa se um tampão é ou não arte? O que me ofereciam era pura dramaturgia.
Dois anos antes daquela tarde, a mostra "Sensation", em Londres, já havia apresentado às massas a nova geração de artistas britânicos. Mas fui ignorante a esse respeito até o encontro casual com Tracey Emin.
Doze anos se passaram. Eis-me em Londres. Resignada com a perspectiva de enfrentar a fila da London Eye para júbilo de meu filho, atravesso a ponte rumo à descomunal roda gigante. Na outra margem do rio, leio o mesmo nome de outrora, em letras garrafais, na fachada da Hayward Gallery: "TRACEY EMIN, LOVE IS WHAT YOU WANT".
O ponto de partida da retrospectiva é uma carta do pai sobre seu vício em mulheres, álcool e jogo.
A majestosa "Knowing My Enemy" preenche o imenso salão: um refúgio de praia que se eleva em palafitas e se estende por um píer sobre um mar inexistente. Seu pai sonhava em ter um lugar assim.
A peça faz lembrar um outro casebre à beira-mar, "The Hut", retirado da praia de Whitstable, em Kent, onde Emin teria feito amor com seu namorado de então.
A obra se perdeu em maio de 2004, no incêndio que lambeu o galpão onde a galeria Saatchi guardava seu acervo. "Everyone I Have Ever Slept With 1963-95", uma cabana de náilon com os nomes de todos os homens com quem a moça dormiu no período, também desapareceu.
Não pude rever a cama, mas os tampões estavam lá. O sangue, de um marrom esmaecido, difere da cor chocante da memória.
Emin borda fodas homéricas, masturbações feéricas e declarações mordazes em néon de padaria. Letra por letra, os bordados contrastam com o conteúdo das palavras.
Essas são de um romantismo brutal, de mulher. Não acredito que um rapaz as leia como eu. Violentamente feminina, mas sem ranço feminista ou enganos de igualdade, Emin peca com volúpia e ironia. E o faz em público.
A igreja sempre soube o poder da confissão. Freud reinventou a prática para os modernos ateus, e a internet a promiscuiu. Em meio ao excesso de confidências banais, impressiona a ambição poética com que Tracey Emin escancara as portas de seu confessionário.

FERNANDA TORRES escreve mensalmente neste espaço.


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