São Paulo, sexta, 21 de agosto de 1998

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Curta revive Vassourinha


"A Voz e o Vazio", do diretor Carlos Adriano, recupera imagens do cantor, que iniciou carreira aos 12 anos de idade, na rádio Record, e morreu aos 19, no auge do sucesso, deixando apenas 12 músicas gravadas; filme será exibido em festival amanhã em SP


ALBERTO HELENA JR.
da Equipe de Articulistas

Inverno, noite escura e de garoa. Pelas ruas desertas da cidade... lembrou-se dos primeiros versos da canção da moda ao pisar a calçada da praça da República vazia naquela noite típica da São Paulo dos anos 30. Num átimo, como numa sucessão de slides, desfilaram em sua memória as cenas dramáticas de três anos antes -os estudantes, acossados pelos esbirros de Getúlio e o saldo: quatro jovens mortos que rapidamente se transformaram numa sigla, em seguida numa senha que detonou a Revolução Paulista, o MMDC.
Fez-se uma lâmina de frio interior, e ele ajeitou o chapéu de feltro, apertou o nó do "foulard" de seda branco, amansou o bigode negro, bem aparado, e, ao meter a mão no bolso do sobretudo cinzento, deu-se conta. E a carteira?
Omessa! Que maçada! Esquecera a carteira na mesa da salinha de diretor, posto que assumira recentemente. Voltou sobre seus passos até o número 17, onde Paulo Machado de Carvalho havia instalado a rádio Record, subiu as escadas e, de súbito, aquela voz... Uma voz aveludada, indecifrável, seria homem ou mulher?, cogitou, entre curioso e seduzido. Em silêncio, percorreu o corredor escuro, guiado pela voz, até abrir a porta do pequeno auditório vazio. No palco, de vassoura em punho, à guisa de um microfone de pedestal, um menino de seus 12 anos, com o uniforme de estafeta de hotel de luxo, cantava um samba de sucesso. Tal era a afinação, tão inventivo era o sincopado, que Raul Duarte, nosso personagem, teve a impressão que um halo iluminava aquele rostinho negro como a noite que ele deixara na rua.
Naquele instante, Raul não teve dúvidas: diante dele nascia uma estrela, que se chamaria Vassourinha, já que era faxineiro da rádio, e assim conhecido por todos. Só não sabia que Vassourinha seria mais cometa do que estrela, de breve e luminosa passagem.
Essa cena, que foi narrada por muitos anos sempre que alguém falasse de Vassourinha, tem todos os ingredientes de uma grande abertura de musical de Hollywood dos anos 30 e 40. Inclusive o essencial: é absolutamente falsa.
Sim, é verdade que Raul Duarte foi o descobridor de Vassourinha, um sambista que surgiu aos 12 anos de idade, na rádio Record, gravou apenas seis discos de 78 rpm (rotações por minuto), o que quer dizer 12 músicas, e que morreu de tuberculose óssea aos 19 anos, no auge do sucesso.
Mas, na verdade, Vassourinha nunca chegou a ser faxineiro da Record. Já entrou como cantor, por indicação de Jaime Faria da Rocha, um redator de publicidade da Record, que, certo dia, falara a Raul de um crioulinho ritmista, filho da empregada da pensão onde morava. Apenas foi registrado como contínuo, por artes da legislação trabalhista da época, que não permitia a profissionalização de garotos no mundo do entretenimento, depois que Raul descobriu que ritmista era a avó do Jaime. O garoto era um cantor de primeira.
Mas havia um problema: sua voz de menino ainda flutuava entre o registro feminino e o masculino. Por isso, Raul, de início, pensou em dar-lhe um nome andrógino, tipo Jurandi. O garoto refutou, e o compositor Antonio Almeida, que acabou se transformando no autor da maioria dos sucessos do iniciante, foi na mosca: "Bota logo o nome de Vassourinha. Afinal, ele parece filho do Vassoura, gente".
Vassoura era o anjo da guarda dos boêmios daquele tempo. Chofer de táxi, fazia ponto ali no largo do Paissandu, em frente ao Ponto Chic, reduto de artistas, jogadores de futebol, jornalistas, poetas, pobres e coitados.
Resumindo: no pé da madrugada, o paciente motorista recolhia os bêbados, jogava-os no banco traseiro de seu Packard negro e levava-os para casa. Fazia, enfim, a faxina da madrugada, para que a manhã de São Paulo nascesse de cara limpa. Por isso, Vassoura.
Assim, ficamos sabendo que nosso herói era um menino de 12 anos, filho de uma empregada numa pensão lá pelos lados da Vila Buarque, indicado por Jaime Faria da Rocha a Raul Duarte como ritmista, que virou cantor, imortalizando-se como Vassourinha.
Mas qual, afinal, o seu nome verdadeiro? Eis outra confusão. Quem for hoje ao cemitério do Redemptor verá erguer-se uma lápide com o nome de Mário Almeyda Ramos. Ali está Vassourinha, isso é certo. Pois, seguindo-se o rastro do seu fim, que o destino decretou na noite de 3 de agosto de 1942, chegamos ao Araçá, onde o caixão baixou pela primeira vez, um dia depois, sob verdadeiro tumulto.
Além da grande afluência de fãs, deu-se que seu pai, seu Ramos, movido pela dor da perda irreparável, exagerou na dose, e armou o maior fuzuê. Houve gente pisando no caixão, corre-corre, empurra-empurra, gritos e imprecações.
Depois, baixou o silêncio, mas Vassourinha não descansou em paz por muito tempo, ninguém sabe por quê. Só se sabe que, quatro ou cinco anos depois, o que dele sobrou foi removido para o novo jazigo, que, mais tarde, por iniciativa do radialista Moraes Sarmento, recebeu a lápide que imortaliza o nome de Mário Almeyda Ramos. Mas era esse mesmo o seu nome? Quem sabe, já que, nos registros da Record, consta Mário Ramos de Oliveira?
O fato é que o autor de uma obra preciosa, embora reduzida e datada, continua aí vivíssimo entre nós com o timbre de Vassourinha. Sua imagem se congelou em uma dezena de fotos recortadas e coladas por ele mesmo em dois álbuns de fotos antigos, daqueles de formato retangular, capa de couro marrom e cordão trançado de veludo.
Desses, apenas um sobrou, porque tive o cuidado, há 30 anos, de escamoteá-lo de um seu meio-irmão, que, infelizmente, levou não só o outro álbum como uma relíquia ainda mais preciosa: o violão que Vassourinha, pouco antes de morrer, havia comprado de Francisco Alves, o Chico Viola, que agora estaria completando cem anos de vida, caso não a tivesse deixado na via Dutra, em 52, num desastre que comoveu o Brasil.
Assim, o que restou de Vassourinha foi um álbum de recortes de jornais falando dos shows que fazia ao lado dos maiores astros da época, como Almirante, Carmen Miranda, Noel Rosa, e agora, o curta "A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha", de Carlos Adriano.
Pode-se dizer mesmo que Vassourinha é apenas uma voz firme, fina, maliciosa, sorridente, repetindo os mesmos versos, os mesmos breques, as mesmas síncopes dos mesmos velhos sambas, que ressurge, cristalina e jovial, de tempos em tempos. Até quando?



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