|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FOTOGRAFIA
Barcelona expõe transgressões de Rio Branco
CRISTIAN AVELLO CANCINO
free-lance para a Folha
O fotógrafo Miguel Rio Branco
ganha hoje uma consistente retrospectiva de seus últimos trabalhos, organizada pela Fundação
La Caixa de Barcelona, apresentando quatro instalações com
imagens estampadas de luz bestial, o combustível de sua obra
desde o final dos anos 70, quando
criou a série fotográfica em preto-e-branco "Negativo Sujo", talvez
seu primeiro conjunto de imagens em tom de denúncia social.
Hoje Rio Branco indica um caminho possível para se ascender
ao universo das cores difusas, para manter uma relação afetiva
com elas, mesmo que se imprimam da luz rarefeita de um pequeno quarto de bordel, de um
vestiário frio de uma academia de
boxe ou do corpo retalhado de
uma prostituta de Salvador.
Rio Branco sempre se sentiu
atraído pelo inevitável, pela violência e morte tangentes à sociedade contemporânea, hoje vista
"subtraída a qualquer deterioração", como dizia o poeta mexicano Octávio Paz, referindo-se às
imagens veiculadas pela publicidade e pela TV.
Há quem o chame de niilista,
afinal Rio Branco trata antes de
mais nada da miséria da condição
humana, construiu sua obra denunciando a corrupção dos homens, como Rousseau.
"Hoje em dia meu trabalho anda menos diretamente temático.
Penso, após tudo o que fiz, que
não adiantava muito tentar denunciar as coisas de maneira veemente, porque tudo isso se diluía,
perdia força depois."
Talvez tenha compreendido a
inevitabilidade da morte, o que
vale também para as imagens.
Mas não fechou os olhos.
Uma rápida olhada nos trípticos ao lado, da série "Entre os
Olhos, o Deserto", inédita no Brasil, poderia indicar o desprendimento atual de Rio Branco em relação ao mundo prosaico.
Está experimentando "uma certa atração pela abstração", disse à
Folha, andando de um lado para
outro em seu estúdio, localizado
numa ladeira do bairro de Santa
Teresa, no Rio de Janeiro.
A série foi exibida anteriormente em San Diego (EUA), em 1997.
Trata-se de uma instalação em
que trincas de imagens são sucessivamente projetadas numa parede. A cena central dessa instalação
é sempre enigmática. Pode ser um
deserto, um close de um olho que
não se vê, como este do cavalo que
aparece no tríptico ao lado, ou a
imagem de Paul Newman mediada por uma tela de televisor.
Para ocupar as bordas desses
trípticos, Rio Branco escolheu cenas mais objetivas, olhos que se
reconhecem, como se nos dissesse que o mundo real, de aparências, esconde entre os olhos um
palco pouco iluminado, um mistério profundo como os cânions
do deserto.
O escritor norte-americano David Levi Strauss lembra, no prefácio que escreveu para o livro "Miguel Rio Branco", publicado pela
Cia. das Letras no ano passado,
que, segundo os antigos, entre os
olhos, a glândula pineal guarda a
"morada da alma, que age como
uma ponte entre o mundo visível
e o invisível".
O ensaio de Strauss leva o sugestivo título de "A Bela e a Fera, Bem
entre os Olhos", reforçando a
idéia que, apesar das aparências
ou, considerando as imagens impressas nesta página, apesar do
que não se vê, o trabalho de Rio
Branco ressalta a ambiguidade
das coisas vividas, claramente, como poderá atestar o público de
Barcelona.
Seguindo esse raciocínio, as
imagens que cria hoje assumem
ares de universalidade. "Não deixo de ser contraditório, pois, ao
mesmo tempo em que abdico da
clareza para mergulhar na abstração, parece que estou me comunicando com mais pessoas", diz.
Ainda assim, admite que seu
trabalho mais notório é "Out of
Nowhere", apresentado pela primeira vez na Bienal de La Habana, em Cuba, no ano de 1994.
A série reúne as imagens clicadas na academia de boxe Santa
Rosa, no bairro da Lapa, Rio de
Janeiro. Essas fotos também integram a retrospectiva que começa
hoje na Catalunha.
"Foi curiosa a maneira como
iniciei esse trabalho. Havia visto
no jornal uma foto de um boxeador com apenas um braço. Um
boxeador de um só braço é uma
coisa inusitada, que não se vê todo dia. Ele treinava aqui perto de
casa. Resolvi ir atrás e acabei conhecendo, naquela academia, um
resumo inaudito do Brasil. Naquele lugar treinavam bandidos,
policiais, traficantes, havia também putas que iam lá para tentar
arrumar um programa."
A esse pequeno antro Rio Branco confiou um de seus segredos
mais recônditos: "Interesso-me
pelo lado poético da violência, pela eterna tensão entre a vida e a
morte". É seu lado fera, revelado
entre os olhos de que fala Strauss.
"Isso existe, parece até que sou
um pouco pessimista", completa.
E aqui não há nada de glamourização. Não se trata de uma "estética da miséria", mas da subversão de um dos paradigmas clássicos da estética, aquele lançado
por Leonardo da Vinci no "Ginevra": a beleza adorna a virtude
("virtutem forma decorat").
Sobre isso, Strauss escreve: "As
imagens de Rio Branco se comprazem na revelação da beleza,
insistindo em que essa beleza deve ser construída". E, aqui, a beleza se constrói com a matéria em
mutação, como se quisesse inventariar o que já se foi.
Por isso, os catalães vão conhecer agora uma obra poderosa, que
trabalha o limite, situações dramáticas, o sexo e a transgressão, a
animalidade, coisas que os homens, acreditando-se "subtraídos
à deterioração", esforçam-se por
esconder, mas que estão bem no
meio de seus olhos.
Texto Anterior: Arnaldo Jabor: Ninguém ousa namorar as deusas do sexo Próximo Texto: Fotógrafo também vai a Liverpool Índice
|