São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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MÚSICA

Cidadão Instigado lança trilha sonora da decadência

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

A princípio , estranha. A posteriori, mais estranha ainda, sem cobiça de rótulos na prateleira. Uma trilha que escapa tanto do chato e suposto virtuosismo quanto dos "novidadeiros", novos ricos de samples e chocalhos eletro-alguma-coisa. "O Ciclo da Decadência", primeiro disco do Cidadão Instigado, está na praça.
O grupo é orientado por Fernando Catatau, 30, cearense que já engrossou o couro no frio de SP, onde vive. Os apressados podem dizer que lembra coisa do Tom Zé enquanto sertanejo jovem. "Viajo segunda-feira, Feira de Santana". Ou o Arnaldo Batista de "Bomba h sobre São Paulo" Basta de comparações.
"Cada olhar contém o seu defeito", atalha, em uma das letras, Catatau. "Temos o direito de não sermos bonitos", diz a mesma composição, que se chama "O Põe.Tu de Parto.Ida". Engana-se quem imaginar que está diante dos neoconcretismos abestalhados de Arnaldo Antunes.
O Cidadão Instigado tem um disco de cinco partes, como uma narrativa, trilha sonora da trajetória do próprio Catatau.
Não é trava-língua folclórico para enganar menina urbana e culpada. São dores do mundo particularizadas com sombras de jazz, voz de cego de feira (Catatau de novo), culto à guitarra (sob a responsabilidade do mesmo) e tecladinho deliciosamente brega, como em Marcio Greyck, como nos italianos, "palore, palore".
"O som não é triste, é denso", disse Catatau. "É minha história". O rapaz fez um dos importantes discos, para ficar na geopolítica da fome, do período pós-manguebit. Não há registro entre os conterrâneos cearenses, mesmo considerando o ensaiozinho de maracatu de Ednardo, de tal excelência.
Tem "sustança" o menino, como os nordestinos traduzem forma e conteúdo. E gravou tudo em sistema analógico, leia-se fitas de rolo, para amplificar a estranheza da sua trilha sonora. Em uma faixa, tira onda com a escolha, diz que vai morrer e voltar digitalizado. "Digital é meio plástico, né?", considera o reciclável.
Na faixa "O Caboré e o Presidente", o Cidadão Instigado conta um alumbramento às avessas de um irmão de 7 anos. Menino de olho esbugalhado é caboré no dizer semi-árido de Câmara Cascudo. A pequena criatura se assustou com a queda de uns muros, tudo pós-Berlim, para a abertura de uma nova avenida moderna em Fortaleza. Atrás dos escombros, novíssimas favelas.


O Ciclo da Decadência
    
Artista: Cidadão Instigado
Lançamento: Selo Instituto/Trama
Quanto: R$ 19, em média



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