São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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ANÁLISE

Diretor cria estranho mundo velho

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Quem viu "A Música Mais Triste do Mundo" já deve ter suspeitado, mas era mesmo preciso uma retrospectiva de Guy Maddin para confirmar: seu estilo retrô-vanguardista (só mesmo um paradoxo para defini-lo), o estranho mundo velho, é a novidade na cena contemporânea.
Novidade não é o termo: tudo se passa como se o imaginário de uma era (clássica) do cinema voltasse como pesadelo. Um pesadelo claustrofóbico e edipiano.
Seus primeiros filmes ("Contos do Hospital Gimli", "Arcanjo"), amadores só no sentido que Jean Cocteau atribuía à palavra, como sinônimo de liberdade de invenção, surgem povoados pelos fantasmas dessa era, espectros da infância do século 20.
Ninfas que se movimentam como em número musical de Busby Berkeley, vultos saídos dos expressionismo alemão, Sissys e menestréis (os estereótipos dos homossexuais e dos negros, respectivamente, na velha Hollywood) tornados arquetípicos.
Para quem não conhece "A Música...", o melhor cartão de visitas para o mundo de Maddin talvez seja "Covardes se Ajoelham", história de tom confessional cheia de dados autobiográficos (o salão de beleza da tia, o time de hóquei do pai de Maddin) encenada à maneira de um filme mudo.
No mundo silencioso do cinema, o canadense encontra, a exemplo dos surrealistas, o próprio inconsciente. O filme, concebido para ser exposto em museus, cada capítulo num compartimento, começa com o personagem do papai Maddin observando por um microscópio o próprio esperma e deriva aos poucos, como a maioria de seus filmes, para uma fantasia de perversão edipiana.
Na estilística do cinema mudo, que manuseia sem afetação, Maddin não busca a inocência perdida do cinema, como fazia a geração da nouvelle vague nos anos 60, antes o contrário. Se ele incursiona no imaginário do cinema dos anos 20/30, é para explorar-lhe a inconsciência, para dele retirar toda a (recalcada) perversão -o imaginário dos filmes de montanha alemães dos anos 20 (gênero que consagrou Leni Riefensthal) resulta assim, em "Cuidadoso", numa fantasia kitsch e edípica.
Maddin visita a era do cinema do pré-Segunda Guerra tomado pela obsessão freudiana do cinema do pós-guerra. Sabe que a inconsciência e o sonho do cinema clássico culminaram, de certa forma, no pesadelo da guerra. Daí sua obra ser povoada por autômatos espirituais, seres que tiveram o espírito roubado, sonâmbulos, espectros perdidos do cortejo fúnebre que fez a história (psicológica) do cinema clássico caminhar, segundo Siegfried Kracauer, de Caligari a Hitler.


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