São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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LITERATURA

Um milhão de exemplares de "Memoria de Mis Putas Tristes" chegam às livrarias da América Latina e Espanha

García Márquez retorna com uma história de amor

DO "PAÍS"

Gabriel García Márquez volta ao romance, dez anos depois de "Do Amor e Outros Demônios", com "Memoria de Mis Putas Tristes" (Mondadori), uma história de amor terna e íntima, mas repleta de ironia e humor: um homem de 90 anos se apaixona por uma menina de 14 com tamanha intensidade que retorna aos tormentos da adolescência.
Em 109 páginas, dispostas em cinco capítulos, o escritor colombiano relata, em primeira pessoa, essa paixão, a vida desse homem sem nome que nada tem de avô; fala de música, de livros; reflete sobre a velhice e a fama. O livro chegou ontem às livrarias da Espanha e da América Latina, com tiragem inicial de 1 milhão de exemplares, em espanhol.
"Quando completei 90 anos, quis me presentear com uma noite de amor louco com uma adolescente virgem", assim começa o romance que, assim como "Do Amor e Outros Demônios" (1994), também traz como protagonista uma menina quase adolescente que é tida como possuída por um demônio.
Entre os dois romances, García Márquez publicou "Notícia de um Seqüestro" (1996), reportagem sobre os seqüestros organizados pelo Cartel de Medellín, e o primeiro volume de suas memórias, "Viver para Contar" (2002).
"Memoria de Mis Putas Tristes" presta homenagem ao escritor japonês Yasunari Kawabata e em particular ao livro "A Casa das Belas Adormecidas". O ancião do colombiano laureado com o Nobel, como os do escritor japonês que recebeu igual honraria, se deixa submergir no prazer do olhar.
García Márquez começou a escrever o romance há muitos anos, mas só o deu por concluído em maio passado. Continua trabalhando em suas memórias e também no livro "Em Agosto nos Vemos", uma série de quatro contos. O narrador de "Memoria de Mis Putas Tristes" é feio, tímido e anacrônico, segundo o escritor o descreve. Trabalhou durante 40 anos como "inflador de despachos" no jornal "Diario de la Paz". Foi professor de gramática espanhola e de latim, se bem que mau professor, como ele mesmo admite. Há meio século publica um artigo dominical no mesmo jornal. Foi iniciado nas "artes do amor" pouco antes dos 12 anos, quando ainda usava calças curtas, por uma senhora chamada Castorina. Nunca se deitou com uma mulher sem pagar e, nas poucas ocasiões em que dormiu com mulheres que não eram do ofício, lhes dava algum dinheiro para se sentir tranqüilo. As putas não lhe deixaram tempo para se casar.
Quando tinha 20 anos, começou "um registro" das mulheres com que fazia amor. Anotava a idade, o lugar e uma breve descrição das circunstâncias. Batizou a compilação de "Memoria de Mis Putas Tristes". Homem metódico e ordeiro, vive em uma bela casa herdada dos pais, mas tem poucos recursos porque suas duas aposentadorias não dão para muita coisa e o artigo dominical paga ainda menos. Faz críticas de música de graça.
Aposentado, mas não acabado e sentindo-se às vezes condenado à vida eterna, as coisas começam a mudar certo dia, em 29 de agosto, quando ele completa 90 anos. O presente que quer dar a si mesmo faz com que tudo mude. "Foi o princípio de uma nova vida em uma idade na qual a maioria dos mortais está morta."
A epígrafe do livro, extraída de "A Casa das Belas Adormecidas", de Yasunari Kawabata, é reveladora: "A dona da pensão advertiu ao velho Eguchi que não fizesse nada de mau gosto. Nada de enfiar o dedo na boca da mulher adormecida, ou algo parecido".
Uma velha cafetina que ele não freqüentava já há 20 anos lhe proporciona uma adolescente virgem de 14 anos para sua noite de glória. Quando ele chega, a menina, que cuida de seus numerosos irmãos e trabalha em uma fábrica pregando botões, está dormindo. Contempla-a nua, mas não a acorda. Vai embora ao amanhecer. E volta na outra noite, e na seguinte. Sussurra-lhe uma canção ao ouvido: "A Cama de Delgadina de Anjos Está Rodeada".
Uma história de amor sem palavras. Ele a prefere adormecida ou desperta? É uma das partes mais bonitas do romance. García Márquez mantém uma tensão que aprisiona o leitor, até que oferece um final inesperado. E antes disso o ciúme, o desespero, o amor do velho que "não se reconhecia em sua dor adolescente". Ele, que "sempre havia entendido que morrer de amor não era mais que licença poética".


Tradução de Paulo Migliacci


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