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CONTARDO CALLIGARIS
"A Dona da História"
Assisti a "A Dona da História", de Daniel Filho, seguindo o conselho de amigos e pacientes, todos entusiastas. Queriam que eu visse, porque para
eles tinha sido uma experiência
comovedora e feliz. Pois bem,
agradeço-lhes.
O filme funciona como uma
maravilhosa sessão de terapia,
para casais e para solteiros. Explico por quê.
Primeiro, um resumo da trama
(adaptada da peça homônima de
João Falcão). Nesta altura, quase
todos devem conhecê-la.
Carolina e Luís Cláudio são casados há 30 anos. É aquele momento de sossego, quando "as
crianças" já foram embora, e está
na hora de vender o apartamento
onde elas foram criadas. Quem
sabe agora dê para fazer aquela
famosa viagem, não é?
É também o momento de olhar
para trás e fazer um balanço. Carolina se pergunta se sua cara de
hoje tem algo a ver com seus sonhos adolescentes. No meio dessa
tarefa impossível (ou melhor, possível, mas logicamente decepcionante), ela acaba descobrindo
que a banalidade aparente de sua
vida (como de qualquer vida, na
verdade) constitui uma história
que vale a pena. Ou seja, que valeu a pena ser vivida e vale a pena
ser contada.
Disse que o filme é uma sessão
de terapia para casais. Faça o teste: assista com seu companheiro
ou sua companheira de muitos
anos. Talvez ambos achem que
estão hoje numa união um pouco
chocha: uma televisão à noite,
transa-se uma vez por semana e
olhe lá. Esta união, durante anos,
foi uma batalha com fraldas, mamadeiras, febres, choros noturnos
e orientadoras pedagógicas, sem
contar as corridas noturnas para
apanhar "as crianças" naquelas
festas malditas. Faz tempo que a
dificuldade do fim de mês produz
brigas inúteis. Às vezes, parece-lhes que esta união roubou os melhores anos de suas vidas. Você
não foi pintor maldito em Pigalle
porque não podia largar tudo e
viver de expedientes. E você deixou de dançar jazz e tentar fortuna na Broadway porque, depois
de duas gravidezes, o corpo não é
mais o mesmo. É tudo verdade,
ou quase.
Parêntese aberto. É "quase"
verdade porque a lista das renúncias que o outro nos impôs serve
para evitar a responsabilidade
por nossas próprias escolhas. Quis
ter dois filhos e, em vez de medir o
custo de meu próprio desejo, prefiro achar que foi o parceiro que
matou meus outros sonhos, aqueles que deixei de lado para realizar a vontade de ser pai ou mãe.
Parêntese fechado.
Mas imaginemos que seja verdade, que nossas renúncias sempre aconteçam por causa do outro.
Mesmo assim, aposto que você
sairá da sala de cinema pensando
que esta sua vida, que parece pequena, protegida demais, distante dos arrepios do mar aberto e
das emoções do começo de seu
amor, esta vida, na verdade, foi
uma grande aventura. A banalidade do cotidiano pode dar samba; é só saber olhar (e tocar cavaquinho ou contar) com ternura
nem tanto para o parceiro que está ao seu lado, mas para você
mesmo ou mesma, para a vida
que foi e é a sua.
Quem operará esse milagre? O
próprio filme. Pois, nele, a história de Carolina e Luís Cláudio,
assim como é, com seus bate-bocas e seus sonhos perdidos, torna-se um romance.
Nossa cultura idealiza o amor
romântico. Mas você deve ter
constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou
primeiros encontros deslumbrantes. Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é
durar no amor e viver juntos. Em
geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville". É sublime
apaixonar-se, separar-se ou ser
separado pela fatalidade, mas é
ridículo conviver. O filme de Daniel Filho é uma exceção: ele é freqüentemente engraçado, é claro,
mas não é uma versão cômica do
casamento. É uma (rara) visão do
amor que dura, que é parecido
com os nossos amores e que, mesmo assim, pode ser idealizado.
Não pense que o filme seja terapêutico apenas para casais com
dez anos de união ou mais. Como
disse, ele vale também para solteiros.
No sábado passado, com um
grupo de colegas, falávamos de
como é importante e complicado,
numa terapia, fazer que alguém
dê valor à sua própria vida. Uma
colega notou que muitos pais
ateus criam seus filhos numa religião; querem que os jovens tenham uma boa razão de viver.
Ora, uma tarefa essencial do terapeuta poderia ser resumida assim: ajudar cada um a dar significação à sua vida, sem que, por isso, ele deva acreditar num sentido
do mundo. Ou seja, permitir que
cada um descubra que, mesmo
que não faça parte de um grande
esquema (divino ou humano),
sua vida vale a pena. E por que
valeria a pena? Simplesmente
porque cada vida pode ser um romance que merece ser contado. Se
soubermos atribuir à nossa vida a
qualidade de uma história, reconheceremos sua dignidade.
Como se consegue isso? O percurso de Carolina, no filme, mostra exata e humildemente como.
Resta apenas dizer que Marieta
Severo e Débora Falabella (Carolina, agora e no passado), assim
como Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro (Luís Cláudio, agora e
no passado) são perfeitos. Aliás,
Marieta Severo é mais que perfeita.
Obrigado a Daniel Filho e a toda a turma.
ccalligari@uol.com.br
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