São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

31ª Mostra de SP

Cinema/"I'm Not There"

Todd Haynes filma retrato arrebatador e autoral de Bob Dylan

Em "I'm Not There", seis atores recuperam as fases da vida do músico americano em série de quadros independentes

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Biografias cinematográficas costumam condenar seus personagens à morte. O prefixo "bio", quando aplicado aos filmes, mais parece uma ironia, tantos são os retratos mumificantes que povoam as telas de cinema. Nesse contexto específico -mas também fora dele-, "I'm Not There" é quase um milagre.
O projeto do cineasta Todd Haynes (de "Longe do Paraíso") é reinventar um gênero (a cinebiografia), buscando um meio de não aprisionar o biografado -no caso, Bob Dylan.
Roteiro, direção e atores caminham juntos à procura de uma estrutura aberta e atemporal capaz de absorver a singularidade e a multiplicidade, características normalmente sufocadas pelas regras da dramaturgia tradicional.
Trata-se, portanto, de um projeto ambicioso e que se impõe desafios gigantes. O menor deles é a possibilidade da auto-importância demasiada, ou seja, a crença cega na capacidade libertadora da pesquisa formal e sua sobreposição sobre todo o resto; o maior é o simples fracasso, tão comum em uma arte de forças criativas e econômicas complexas como o cinema, em que a opção pela simplicidade costuma ser o mais forte aliado de diretores-autores.
Pois Todd Haynes dribla todas essas armadilhas. Depois de um longo tempo lutando para levantar financiamento sem fazer concessões ao projeto, o diretor e sua equipe entregaram um filme arrebatador.
"I'm Not There" é composto de quadros flexíveis e independentes que representam fases da vida de Bob Dylan. Atores diferentes "vivem" personagens que nem sequer têm o mesmo nome. Combinados, no entanto, esses quadros se juntam em uma fotocolagem que forma o retrato de uma só pessoa, ainda que de personas múltiplas e reinventadas. Nas brechas dessa multiplicidade há um cimento: o conjunto de uma obra variada, porém fiel a alguns princípios e valores.
Nessa estrutura, os atores são praticamente co-autores do filme. Marcus Carl Franklin (Woody), Heath Ledger (Robbie), Christian Bale (Jack e Pastor John), Ben Whishaw (Arthur), Richard Gere (Billy) e Cate Blanchett (em composição brilhante que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza) vivem os sete alter-egos de Dylan.
Woody, por exemplo, é um menino negro que se apresenta como Woody Gutherie, grande influência musical; Arthur é o poeta (prenome de Rimbaud, não por acaso) e Billy é Billy the Kid, no episódio cheio de referências cinematográficas.
Essa estrutura talvez só faça sentido porque o "objeto" do filme é Bob Dylan -um artista que se debateu para sobreviver no interior da indústria e cujo dilema, de certa forma, é também interno ao cinema e a todas as formas de arte contemporânea que têm aos seus pés os grilhões do comércio e o julgamento de valores extra-artísticos (a capacidade de gerar lucro e a celebridade entre eles).
Tudo isso faz de "I'm Not There" um projeto na melhor tradição de Andy Warhol: Haynes fez o filme que bem quis, combinando autoralidade e espetacularidade, apropriando-se de ferramentas de exposição e marketing sem precisar de concessões. Jogada de mestre.

Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Beatles são encapsulados com açúcar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.