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31ª Mostra de SP
Cinema/"I'm Not There"
Todd Haynes filma retrato arrebatador e autoral de Bob Dylan
Em "I'm Not There", seis atores recuperam as fases da vida do músico americano em série de quadros independentes
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
Biografias cinematográficas costumam condenar seus personagens à
morte. O prefixo "bio", quando
aplicado aos filmes, mais parece uma ironia, tantos são os retratos mumificantes que povoam as telas de cinema. Nesse contexto específico -mas também fora dele-, "I'm Not There" é quase um milagre.
O projeto do cineasta Todd Haynes (de "Longe do Paraíso") é reinventar um gênero (a
cinebiografia), buscando um meio de não aprisionar o biografado -no caso, Bob Dylan.
Roteiro, direção e atores caminham juntos à procura de
uma estrutura aberta e atemporal capaz de absorver a singularidade e a multiplicidade,
características normalmente
sufocadas pelas regras da dramaturgia tradicional.
Trata-se, portanto, de um
projeto ambicioso e que se impõe desafios gigantes. O menor
deles é a possibilidade da auto-importância demasiada, ou seja, a crença cega na capacidade
libertadora da pesquisa formal
e sua sobreposição sobre todo o
resto; o maior é o simples fracasso, tão comum em uma arte
de forças criativas e econômicas complexas como o cinema,
em que a opção pela simplicidade costuma ser o mais forte
aliado de diretores-autores.
Pois Todd Haynes dribla todas essas armadilhas. Depois
de um longo tempo lutando para levantar financiamento sem
fazer concessões ao projeto, o
diretor e sua equipe entregaram um filme arrebatador.
"I'm Not There" é composto
de quadros flexíveis e independentes que representam fases
da vida de Bob Dylan. Atores
diferentes "vivem" personagens que nem sequer têm o
mesmo nome. Combinados, no
entanto, esses quadros se juntam em uma fotocolagem que
forma o retrato de uma só pessoa, ainda que de personas
múltiplas e reinventadas. Nas
brechas dessa multiplicidade
há um cimento: o conjunto de
uma obra variada, porém fiel a
alguns princípios e valores.
Nessa estrutura, os atores
são praticamente co-autores
do filme. Marcus Carl Franklin
(Woody), Heath Ledger (Robbie), Christian Bale (Jack e
Pastor John), Ben Whishaw
(Arthur), Richard Gere (Billy) e
Cate Blanchett (em composição brilhante que lhe rendeu o
prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza) vivem os sete
alter-egos de Dylan.
Woody, por exemplo, é um
menino negro que se apresenta
como Woody Gutherie, grande
influência musical; Arthur é o
poeta (prenome de Rimbaud,
não por acaso) e Billy é Billy
the Kid, no episódio cheio de
referências cinematográficas.
Essa estrutura talvez só faça
sentido porque o "objeto" do
filme é Bob Dylan -um artista
que se debateu para sobreviver
no interior da indústria e cujo
dilema, de certa forma, é também interno ao cinema e a todas as formas de arte contemporânea que têm aos seus pés os grilhões do comércio e o julgamento de valores extra-artísticos (a capacidade de gerar lucro e a celebridade entre eles).
Tudo isso faz de "I'm Not
There" um projeto na melhor
tradição de Andy Warhol: Haynes fez o filme que bem quis,
combinando autoralidade e espetacularidade, apropriando-se de ferramentas de exposição
e marketing sem precisar de
concessões. Jogada de mestre.
Avaliação: ótimo
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