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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Este é meu corpo
É uma inversão histórica completa: o bronzeado dos pobres de ontem é um privilégio dos ricos de hoje
A IDÉIA é angustiante. Mas eu
não tenho culpa de nada: revejo mentalmente as minhas
amigas mais próximas e não encontro uma gorda entre elas. E eu gosto
de gordas. Não falo de obesidade
mórbida. Não sou tarado. Falo da
outra: alguma carne para grelhar,
sem a qual a vida é uma tristeza.
Pouca sorte. Joana, Maria, Sara,
Sofia: tudo no ponto. Pior: eu gosto
de gordura e de brancura. Como nos
quadros de Bronzino.
Dupla pouca sorte. As minhas
amigas são magras e bronzeadas
porque a ginástica não perdoa. Em
Portugal, temos três ou quatro meses de calor. Mas elas estão sempre
nas Bahamas, com uma cor e um
corpo que fariam inveja aos habitantes de Salvador.
Deliro? Talvez. Mas pensava em
tudo isso com uma rainha à minha
frente. Falo de "Elizabeth: The Golden Age", o segundo filme de um indiano qualquer com Cate Blanchett
no principal papel. Sim, o filme tem
erros históricos de palmatória: em
1585, a "Rainha Virgem" (1533-1603), como ficou conhecida na Inglaterra, já estava na meia-idade e
não à procura de macho para casar.
Mas existe um pormenor que está
absolutamente correto: a cor da monarca.
Branca? Não. Branco sou eu. A rainha é praticamente fantasmagórica,
como ficou imortalizada nos quadros de Nicholas Hilliard, o famoso
pintor quinhentista. Mais: não é de
excluir que Elizabeth tenha morrido
envenenada por excesso de pó branco. A rainha entendia que a encenação do poder era tão necessária como as vitórias militares sobre a "Invencível Armada" dos espanhóis. A
sua brancura reforçava sua incorruptibilidade, física e política, e estava em sintonia com uma era em que
só os trabalhadores braçais podiam
exibir uma tez queimada pelo sol.
E hoje? Hoje, a brancura e a gordura deixaram de ser marcas de
classe. De classe alta, entendam. Só
no último fim de semana, li na imprensa que um grupo de investigadores portugueses tenciona mostrar
as relações perversas entre o grupo
sócio-econômico e respectiva massa
corporal.
As primeiras conclusões não são
animadoras: gordura é coisa de pobre. Entre os mais ricos, e sobretudo
entre as mulheres mais ricas, a ginástica tem palavra decisiva.
E se os investigadores resolverem
alargar o estudo e avaliar a coloração
da pele, aposto que os resultados serão semelhantes: quanto mais alto
se sobe na escada social, mais bronzeado se fica. É a inversão histórica
completa: o bronzeado dos pobres
de ontem é um privilégio dos ricos
de hoje. O solário também tem uma
palavra a respeito.
Moral da história? Com a crescente democratização da moda no Ocidente, ninguém olha mais para o
traje como forma de identificação
social. Olhamos para o corpo. Porque resta apenas o corpo, e o que fazemos ao corpo, e o que gastamos
com ele, para nos distinguirmos da
massa anônima.
Nos dias que correm, a "Rainha
Virgem" jamais morreria envenenada por pó branco. O mais certo era
morrer debaixo de um solário, queimada da cabeça aos pés. E anoréxica, coitadinha.
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