São Paulo, quarta-feira, 21 de novembro de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Este é meu corpo

É uma inversão histórica completa: o bronzeado dos pobres de ontem é um privilégio dos ricos de hoje

A IDÉIA é angustiante. Mas eu não tenho culpa de nada: revejo mentalmente as minhas amigas mais próximas e não encontro uma gorda entre elas. E eu gosto de gordas. Não falo de obesidade mórbida. Não sou tarado. Falo da outra: alguma carne para grelhar, sem a qual a vida é uma tristeza.
Pouca sorte. Joana, Maria, Sara, Sofia: tudo no ponto. Pior: eu gosto de gordura e de brancura. Como nos quadros de Bronzino.
Dupla pouca sorte. As minhas amigas são magras e bronzeadas porque a ginástica não perdoa. Em Portugal, temos três ou quatro meses de calor. Mas elas estão sempre nas Bahamas, com uma cor e um corpo que fariam inveja aos habitantes de Salvador.
Deliro? Talvez. Mas pensava em tudo isso com uma rainha à minha frente. Falo de "Elizabeth: The Golden Age", o segundo filme de um indiano qualquer com Cate Blanchett no principal papel. Sim, o filme tem erros históricos de palmatória: em 1585, a "Rainha Virgem" (1533-1603), como ficou conhecida na Inglaterra, já estava na meia-idade e não à procura de macho para casar. Mas existe um pormenor que está absolutamente correto: a cor da monarca.
Branca? Não. Branco sou eu. A rainha é praticamente fantasmagórica, como ficou imortalizada nos quadros de Nicholas Hilliard, o famoso pintor quinhentista. Mais: não é de excluir que Elizabeth tenha morrido envenenada por excesso de pó branco. A rainha entendia que a encenação do poder era tão necessária como as vitórias militares sobre a "Invencível Armada" dos espanhóis. A sua brancura reforçava sua incorruptibilidade, física e política, e estava em sintonia com uma era em que só os trabalhadores braçais podiam exibir uma tez queimada pelo sol.
E hoje? Hoje, a brancura e a gordura deixaram de ser marcas de classe. De classe alta, entendam. Só no último fim de semana, li na imprensa que um grupo de investigadores portugueses tenciona mostrar as relações perversas entre o grupo sócio-econômico e respectiva massa corporal.
As primeiras conclusões não são animadoras: gordura é coisa de pobre. Entre os mais ricos, e sobretudo entre as mulheres mais ricas, a ginástica tem palavra decisiva.
E se os investigadores resolverem alargar o estudo e avaliar a coloração da pele, aposto que os resultados serão semelhantes: quanto mais alto se sobe na escada social, mais bronzeado se fica. É a inversão histórica completa: o bronzeado dos pobres de ontem é um privilégio dos ricos de hoje. O solário também tem uma palavra a respeito.
Moral da história? Com a crescente democratização da moda no Ocidente, ninguém olha mais para o traje como forma de identificação social. Olhamos para o corpo. Porque resta apenas o corpo, e o que fazemos ao corpo, e o que gastamos com ele, para nos distinguirmos da massa anônima.
Nos dias que correm, a "Rainha Virgem" jamais morreria envenenada por pó branco. O mais certo era morrer debaixo de um solário, queimada da cabeça aos pés. E anoréxica, coitadinha.


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