São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

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RODAPÉ

Livro reúne cartas passionais de Caio Fernando Abreu

Os clássicos e a auto-ajuda de Dostoiévski

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Uma das (raríssimas) glórias do defunto império soviético era uma das melhores armas já produzidas, o rifle de assalto AK-47, mais conhecido pelo nome de seu criador, Mikhail Timofêievitch Kalashnikov. Outra dentre elas era seu mercado editorial. Que obviamente nada tinha de mercado.
As tiragens de 100 mil exemplares das obras de Vladimir Maiakóvski tornaram-se, com justiça, legendárias. Quanto às menos poéticas do Vladimir mais velho, Ilitch Ulianov, ou Lênin, estas sem dúvida causaram dano maior em termos (não apenas) ecológicos. Ainda assim, enquanto imperou o partido único, todos os países palmilhados pelas botas do Exército Vermelho publicaram copiosamente a melhor literatura.
Embora sobretudo tchecos e húngaros caprichassem na apresentação de seus milhares de tomos, esteticamente o grosso das publicações deixava a desejar algo que, por outro lado, era compensado pelo preço ridículo de cada volume: alguns copeques na Rússia e, nas nações irmãs do Pacto de Varsóvia, umas poucas subdivisões da moeda local que, mesmo inteira, não valia grande coisa.
Fazendo jus a uma região que se aproximara dos 100% de alfabetização, os títulos publicados consistiam na nata da literatura clássica e moderna: de Homero a Proust, passando por Dickens e Dostoiévski, com destaque especial para autores menos conhecidos, se bem que celebrados em suas respectivas pátrias. Tudo isso era avidamente consumido e não só como leitura obrigatória. Na fila da carne diante do açougue vazio, no quarto iluminado por uma única lâmpada de 50 watts, na biblioteca pública enquanto o inverno beirava os -5O ou no abrigo antiaéreo durante o cerco da cidade por tropas alemãs, os camaradas liam sem parar e o faziam com prazer.
E, depois de 1989 na Europa Centro-Oriental (91 na ex-URSS), tudo mudou. De um momento para o outro. Havia antes (surpresa!) a censura. Nem sempre fácil de compreender. George Orwell de "1984" e "A Revolução dos Bichos", Arthur Koestler de "O Zero e o Infinito", Soljenítsin de "O Arquipélago Gulag" e Boris Pasternak de "Dr. Jivago" estavam ausentes por razões claras. "Lolita", porém, era inacessível tanto por questões de decência quanto pelo fato inexplicável de que seu autor, Vladimir Nabokov, preferira trocar o paraíso socialista pelos Estados Unidos.
Como se poderia esperar, ao primeiro sinal de que o censor baixara a guarda, as livrarias se inundaram de clássicos políticos previamente proibidos. Isso durou, se tanto, um ano. Vale a pena notar que esses clássicos vinham há muito circulando clandestinamente e, portanto, já estavam traduzidos e prontos para serem impressos. A enxurrada seguinte compunha-se de best-sellers ocidentais, de preferência os carregados de erotismo, pois se o sexo era algo totalmente liberado por lá, escrever sobre ele ainda era tabu.
A alta dessa maré tampouco se estendeu por mais de um ano. Finalmente, chegou para ficar a variedade inexaurível do que chamamos genericamente de misticismo, new age e auto-ajuda: de Lobsang Rampa e Krishnamurti (que parecem esquecidos no Ocidente capitalista), passando por Khalil Gibran até o nosso Paulo Coelho. Os clássicos continuaram no prelo, só que em edições menores, de tamanho idêntico às desses mesmos livros no resto do planeta.
Como se vê, o culpado por essa situação criminosa é o mercado : deixem o leitor escolher e ele vai atrás do que, Tolstói? Não. Ele compra a primeira obra cuja contracapa lhe acene com a vida eterna, um marido ou muitas mulheres, a cura da frigidez ou da impotência, um método infalível de ganhar dinheiro. Críticos sociais e filósofos, mandarins universitários e intelectuais não param, desde então, de reclamar. Uma utopia cultural foi demolida e, o que é pior, pelos seus beneficiários.
O que isso prova? Primeiro, que milhões frequentavam Dostoiévski para chorarem com os infortúnios de Sônia Marmeladov ou se aconselharem com Aliocha Karamázov. E, segundo, que países onde todo mundo lê Homero e Proust não são geralmente bons para se morar.


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