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RODAPÉ
Livro reúne cartas passionais de Caio Fernando Abreu
Os clássicos e a auto-ajuda de Dostoiévski
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Uma das (raríssimas) glórias
do defunto império soviético era uma das melhores armas já
produzidas, o rifle de assalto AK-47, mais conhecido pelo nome de
seu criador, Mikhail Timofêievitch Kalashnikov. Outra dentre
elas era seu mercado editorial.
Que obviamente nada tinha de
mercado.
As tiragens de 100 mil exemplares das obras de Vladimir Maiakóvski tornaram-se, com justiça,
legendárias. Quanto às menos
poéticas do Vladimir mais velho,
Ilitch Ulianov, ou Lênin, estas sem
dúvida causaram dano maior em
termos (não apenas) ecológicos.
Ainda assim, enquanto imperou
o partido único, todos os países
palmilhados pelas botas do Exército Vermelho publicaram copiosamente a melhor literatura.
Embora sobretudo tchecos e
húngaros caprichassem na apresentação de seus milhares de tomos, esteticamente o grosso das
publicações deixava a desejar algo
que, por outro lado, era compensado pelo preço ridículo de cada
volume: alguns copeques na Rússia e, nas nações irmãs do Pacto
de Varsóvia, umas poucas subdivisões da moeda local que, mesmo inteira, não valia grande coisa.
Fazendo jus a uma região que se
aproximara dos 100% de alfabetização, os títulos publicados consistiam na nata da literatura clássica e moderna: de Homero a
Proust, passando por Dickens e
Dostoiévski, com destaque especial para autores menos conhecidos, se bem que celebrados em
suas respectivas pátrias. Tudo isso
era avidamente consumido e não
só como leitura obrigatória. Na fila da carne diante do açougue vazio, no quarto iluminado por uma
única lâmpada de 50 watts, na biblioteca pública enquanto o inverno beirava os -5O ou no abrigo antiaéreo durante o cerco da
cidade por tropas alemãs, os camaradas liam sem parar e o faziam com prazer.
E, depois de 1989 na Europa
Centro-Oriental (91 na ex-URSS),
tudo mudou. De um momento
para o outro. Havia antes (surpresa!) a censura. Nem sempre fácil
de compreender. George Orwell
de "1984" e "A Revolução dos Bichos", Arthur Koestler de "O Zero
e o Infinito", Soljenítsin de "O Arquipélago Gulag" e Boris Pasternak de "Dr. Jivago" estavam ausentes por razões claras. "Lolita",
porém, era inacessível tanto por
questões de decência quanto pelo
fato inexplicável de que seu autor,
Vladimir Nabokov, preferira trocar o paraíso socialista pelos Estados Unidos.
Como se poderia esperar, ao
primeiro sinal de que o censor
baixara a guarda, as livrarias se
inundaram de clássicos políticos
previamente proibidos. Isso durou, se tanto, um ano. Vale a pena
notar que esses clássicos vinham
há muito circulando clandestinamente e, portanto, já estavam traduzidos e prontos para serem impressos. A enxurrada seguinte
compunha-se de best-sellers ocidentais, de preferência os carregados de erotismo, pois se o sexo era
algo totalmente liberado por lá,
escrever sobre ele ainda era tabu.
A alta dessa maré tampouco se
estendeu por mais de um ano. Finalmente, chegou para ficar a variedade inexaurível do que chamamos genericamente de misticismo, new age e auto-ajuda: de
Lobsang Rampa e Krishnamurti
(que parecem esquecidos no Ocidente capitalista), passando por
Khalil Gibran até o nosso Paulo
Coelho. Os clássicos continuaram
no prelo, só que em edições menores, de tamanho idêntico às
desses mesmos livros no resto do
planeta.
Como se vê, o culpado por essa
situação criminosa é o mercado :
deixem o leitor escolher e ele vai
atrás do que, Tolstói? Não. Ele
compra a primeira obra cuja contracapa lhe acene com a vida eterna, um marido ou muitas mulheres, a cura da frigidez ou da impotência, um método infalível de ganhar dinheiro. Críticos sociais e filósofos, mandarins universitários
e intelectuais não param, desde
então, de reclamar. Uma utopia
cultural foi demolida e, o que é
pior, pelos seus beneficiários.
O que isso prova? Primeiro, que
milhões frequentavam Dostoiévski para chorarem com os infortúnios de Sônia Marmeladov ou se
aconselharem com Aliocha Karamázov. E, segundo, que países onde todo mundo lê Homero e
Proust não são geralmente bons
para se morar.
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