São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

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"VIDAS DO CARANDIRU"

Instantâneos expõem o sistema prisional brasileiro

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

"Vidas do Carandiru", de Humberto Rodrigues, é um livro que merece ser lido por todos aqueles que se interessam pelo problema das cadeias e da aplicação do direito penal no Brasil. Rodrigues escreve com conhecimento de causa. Condenado por um roubo de obras de arte, ficou preso por 514 dias, até ser absolvido por instância superior em outubro do ano passado. As histórias, as "vidas", que reuniu e relata são absorventes no conteúdo e impressionantes na narrativa.
Entre as mais curiosas está a do próprio autor, que se estende pela primeira parte da obra. Um executivo que ocupou altas posições em grandes empresas de comunicação um dia abandona o emprego. Até aí, nada de extraordinário. Sem rendimentos fixos, ele passa por dificuldades e acaba se afastando da família. Uma história triste, mas ainda dentro da nossa normalidade burguesa. As peripécias de Rodrigues começam a adquirir contornos extraordinários quando ele é preso. Fora condenado por um roubo que nunca cometeu (eu acredito na sua palavra) e sem nem mesmo ter sido ouvido pelo juiz que o julgou.
A empatia é inescapável. Como um homem de classe média alta, que cursou uma universidade, teve bons empregos e salários, assistiu aos mesmos filmes e leu os mesmos livros que nós, vai parar naquilo que era a maior cadeia da América Latina? E ainda por cima injustamente... O que ele fez para sobreviver? O livro é parte da resposta.
Desde o surgimento da escrita, a palavra confere poder. Rodrigues usou o poder da palavra para escapar, no plano psicológico, aos muros do Carandiru. Ao propor-se escrever as histórias de seus companheiros, ele deixava um pouco de ser um preso para tornar-se um cronista, ou, em suas palavras, um "pesquisador".
Como qualquer obra que leve o título "Vidas...", o texto de Rodrigues se inscreve na tradição inaugurada por Plutarco no primeiro século da Era Cristã. Mais do que relatar as histórias de seus companheiros presos -os acontecimentos que os conduziram à cadeia-, o autor pretende apreender-lhes as vidas, revelar algo de suas existências morais.
O termo "existência moral" pode parecer paradoxal aqui, afinal, os biografados não são exatamente varões de Plutarco. Ao contrário, a maioria cometeu crimes bastante graves, que podem incluir homicídio. É curiosa a cumplicidade que se estabelece entre Rodrigues e seus companheiros.
Ela extravasa o texto e alcança também o leitor. Não somos induzidos a esquecer os delitos que eles perpetraram. Ao contrário, tudo é contado claramente. Mas somos levados a ver esses prisioneiros como seres humanos complexos, que enfrentam dificuldades, vivem dilemas e sofrem injustiças, como não poder contar com auxílio jurídico competente. Não se trata de desculpar os criminosos, mas de procurar entendê-los. É o que torna "Vidas" incomodamente humano.
Mas chega de elogios. Assim como ocorre com Plutarco, prefiro o conteúdo das histórias de Rodrigues a seu estilo. O texto é um pouco repetitivo e com alguma frequência resvala na pieguice, o que provavelmente é um problema comum a todo o gênero literatura de prisão. O autor também abusa das epígrafes, espalhando-as por todos os cantos do livro. São pequenos defeitos que não chegam a comprometer o conjunto, cuja força, insisto, reside na vivacidade das histórias.
"Vidas do Carandiru", a partir de pequenos instantâneos, oferece elementos para entender melhor o sistema prisional brasileiro e, por extensão, a própria sociedade brasileira. Não é uma fotografia bonita de ver, apesar de o autor, com um otimismo aparentemente inquebrantável, tentar transmitir sempre uma mensagem de esperança.


Vidas do Carandiru
   
Autor: Humberto Rodrigues
Editora: Geração Editorial
Quanto: R$ 25 (296 págs.)



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