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TEATRO
"A TERRA"
Montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa está em cartaz no Oficina até a próxima segunda-feira
Descrição da terra celebra e resgata a identidade brasileira
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Cem anos após a publicação
de "Os Sertões", os meninos
do Oficina dançam a geografia do
Brasil. O monumento literário de
Euclydes da Cunha, obrigatório
nas escolas, permaneceu por muito tempo intransponível devido
justamente à sua primeira parte,
"A Terra", longa descrição de climas, relevos, flora e fauna pátrios,
que atrasa a narração do massacre
de Canudos.
José Celso Martinez Corrêa, porém, tendo recebido ainda menino o volume de seu pai, soube
guardar intactas essas sementes
de patriotismo, que se preserva do
discurso partidário pelo fascínio
por uma terra que sabe permanecer disfarçada de deserto até explodir de vida na primeira chuva.
E foi com esse encantamento
quase pueril que contagiou seus
seguidores do Uzyna Uzona, forjando-se a montagem em pacientes oficinas e ensaios abertos, que
notícias de jornal tornavam contemporâneas: Bin Laden é Antônio Conselheiro? Bexiga é Canudos? Lula redime a República?
A terra que se canta nessa primeira concretização do longo
"work in progress" continua um
hino, não o do hasteamento de
bandeiras, mas o que se canta nas
decisões de campeonato, um hino
de escola de samba. Entre as arquibancadas do Oficina, cada característica geológica é dançada
em parangolés, traduzindo em rituais a integração da fauna e flora,
emprenhando de sentido cada
termo raro.
Uma celebração mais que um
espetáculo, portanto. Isso quer dizer: um espetáculo tedioso? O público não devoto do dionisismo
do Oficina, que declina o sedutor
convite de integrar o elenco, pode
sorrir irônico de uma afirmação
do coro, encarnado na vegetação
local: "Somos de uma monotonia
desesperadora". E Marcelo
Drummont, representando
Euclydes na platéia, é o primeiro a
rir. Mas basta observar cada celebrante para ver que se sabe o que
se está falando, cada planta que se
descreve com olhos úmidos é o
resgate da própria identidade.
É o deslumbre do aqui agora
que triunfa assim, o termômetro
medindo a seca que prenuncia o
calor da hora da luta. E assim como o coro grego gera os episódios
dos atores, a terra gera o homem,
explica a trajetória gêmea de Conselheiro e Euclydes, que começamos já a testemunhar.
Qual o projeto social do Oficina?
Resgatar os desvalidos, dar orgulho aos miseráveis que não têm a
limpeza segura da Broadway?
Não, esse paternalismo é indigno
de quem vê a história como a recorrência do presente.
Os meninos do projeto Bexigão,
acrobatas e pianistas, sem vergonha de não ser Bela Vista por se
saberem nascidos em berço esplêndido, não são convidados especiais, mas herdeiros dessa terra.
Ostentando a majestade de linhagem africana, vêm buscar na platéia a classe média temerosa do
novo, para que tome posse com
eles de um país que não é Bélgica
nem Índia, e que passa fome em
meio a imensas riquezas naturais.
Não somos nós que os integramos: eles é que nos integram.
Com "Cacilda", o Oficina desentupiu as veias do teatro nacional, fez o presente voltar a jorrar
nos palcos para que se desfizesse
seu luto fechado. Neste primeiro
Natal de Lula, o presente é o Brasil, um vislumbre de patriotismo
não ufanista, que chama cada homem para a luta. Com "A Terra",
mais uma vez o Oficina fecha o
ano abrindo uma era. Bem-vindos, todos nós, ao Brasil.
A Terra
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Uzyna Uzona
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520,
Bela Vista, SP, 0/xx/11/3106-2818)
Quando: sáb. e dom., 18h; seg., 14h30;
até 23/12
Quanto: R$ 30
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