São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Índice

TEATRO

"A TERRA"

Montagem dirigida por José Celso Martinez Corrêa está em cartaz no Oficina até a próxima segunda-feira

Descrição da terra celebra e resgata a identidade brasileira

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Cem anos após a publicação de "Os Sertões", os meninos do Oficina dançam a geografia do Brasil. O monumento literário de Euclydes da Cunha, obrigatório nas escolas, permaneceu por muito tempo intransponível devido justamente à sua primeira parte, "A Terra", longa descrição de climas, relevos, flora e fauna pátrios, que atrasa a narração do massacre de Canudos.
José Celso Martinez Corrêa, porém, tendo recebido ainda menino o volume de seu pai, soube guardar intactas essas sementes de patriotismo, que se preserva do discurso partidário pelo fascínio por uma terra que sabe permanecer disfarçada de deserto até explodir de vida na primeira chuva.
E foi com esse encantamento quase pueril que contagiou seus seguidores do Uzyna Uzona, forjando-se a montagem em pacientes oficinas e ensaios abertos, que notícias de jornal tornavam contemporâneas: Bin Laden é Antônio Conselheiro? Bexiga é Canudos? Lula redime a República?
A terra que se canta nessa primeira concretização do longo "work in progress" continua um hino, não o do hasteamento de bandeiras, mas o que se canta nas decisões de campeonato, um hino de escola de samba. Entre as arquibancadas do Oficina, cada característica geológica é dançada em parangolés, traduzindo em rituais a integração da fauna e flora, emprenhando de sentido cada termo raro.
Uma celebração mais que um espetáculo, portanto. Isso quer dizer: um espetáculo tedioso? O público não devoto do dionisismo do Oficina, que declina o sedutor convite de integrar o elenco, pode sorrir irônico de uma afirmação do coro, encarnado na vegetação local: "Somos de uma monotonia desesperadora". E Marcelo Drummont, representando Euclydes na platéia, é o primeiro a rir. Mas basta observar cada celebrante para ver que se sabe o que se está falando, cada planta que se descreve com olhos úmidos é o resgate da própria identidade.
É o deslumbre do aqui agora que triunfa assim, o termômetro medindo a seca que prenuncia o calor da hora da luta. E assim como o coro grego gera os episódios dos atores, a terra gera o homem, explica a trajetória gêmea de Conselheiro e Euclydes, que começamos já a testemunhar.
Qual o projeto social do Oficina? Resgatar os desvalidos, dar orgulho aos miseráveis que não têm a limpeza segura da Broadway? Não, esse paternalismo é indigno de quem vê a história como a recorrência do presente.
Os meninos do projeto Bexigão, acrobatas e pianistas, sem vergonha de não ser Bela Vista por se saberem nascidos em berço esplêndido, não são convidados especiais, mas herdeiros dessa terra. Ostentando a majestade de linhagem africana, vêm buscar na platéia a classe média temerosa do novo, para que tome posse com eles de um país que não é Bélgica nem Índia, e que passa fome em meio a imensas riquezas naturais. Não somos nós que os integramos: eles é que nos integram.
Com "Cacilda", o Oficina desentupiu as veias do teatro nacional, fez o presente voltar a jorrar nos palcos para que se desfizesse seu luto fechado. Neste primeiro Natal de Lula, o presente é o Brasil, um vislumbre de patriotismo não ufanista, que chama cada homem para a luta. Com "A Terra", mais uma vez o Oficina fecha o ano abrindo uma era. Bem-vindos, todos nós, ao Brasil.


A Terra
    
Direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: grupo Uzyna Uzona
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, SP, 0/xx/11/3106-2818)
Quando: sáb. e dom., 18h; seg., 14h30; até 23/12
Quanto: R$ 30



Texto Anterior: Walter Salles: Panaméricas não-utópicas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.