São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

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WALTER SALLES

Panaméricas não-utópicas

Toda vez que sentia vontade de viajar, Groucho Marx declinava da idéia e optava por comprar um terno. "Um terno novo já é o estrangeiro", dizia. Mais lacônico, Fernando Pessoa escreveu: "Não evoluo. Viajo".
Os tibetanos discordariam. Para eles, as viagens marcavam um retorno ao que era essencial. Uma coisa é certa: aqueles que partem não são os mesmos que retornam. Algo se transforma, ou se perde, no caminho. Inevitavelmente, quer se queira, quer não.
Volto ao Brasil depois de três meses e 14 mil quilômetros na estrada, filmando em vários países deste continente em transe que é a América Latina. A poeira ainda não baixou o suficiente para permitir uma decantação da viagem. Os momentos que vivemos parecem às vezes difusos, os tempos se confundem, mas os rostos das pessoas que encontramos no caminho permanecem inscritos na memória.
Os conflitos que presenciamos ao longo da estrada também ficarão conosco por muito tempo. Embates entre carabineiros e índios mapuches no sul do Chile, ou entre os grevistas da mina de cobre de Chuquicamata e as autoridades de Calama, perto da fronteira entre o Chile e a Bolívia. Conflitos que poderiam ser resumidos em poucas palavras: injustiça social, intolerância, incapacidade de aceitação do outro.
Se há uma imagem recorrente que nos vai acompanhar, é a das centenas de homens e mulheres que vimos à deriva, caminhando à beira das estradas, à procura de terra e trabalho.
No avião, entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro, leio textos sobre migração e desterritorialização, publicados em uma excelente revista mensal mexicana, "Letras Libres", que me foi dada por Gael Garcia Bernal, um dos atores do filme que estamos fazendo. Hans Magnus Enzensberger, autor de "A Grande Migração", fala na revista de um tema central: o exílio e o choque com o outro. Já o sociólogo Roger Bartra escreve sobre a errância e as formas de expressão que atravessam fronteiras -ou não.
Bartra traz à tona um tema crucial: como fica a criação artística em um continente marcado pela desterritorialização?
Para ajudar na resposta, Bartra lembra que um teórico como Kant arquitetou seu pensamento filosófico sem jamais ter saído de sua cidade natal, Konisberg. Já Walter Benjamin passou boa parte da vida na estrada. De um lado, uma obra enraizada e profundamente racional. Do outro, uma obra fragmentada, profética. Uma não invalida a outra, lembra Bartra, mas nos permite tecer relações entre território e produção cultural.
"Expatriados, imigrantes e desterrados fazem parte hoje de um fluxo de proporções extraordinárias, uma descomunal massa heterogênea composta não somente de milhões de pessoas, mas também de inúmeras obras, imagens, idéias e textos que se derramam entre culturas e sociedades diferentes", sugere Bartra. E conclui: "É possível que dessa massa em movimento surjam pessoas que, no meio da confusão reinante, poderão propor novas formas de expressão".
Corta. Talvez seja o efeito criado pelos novos discos de Elza Soares, da Velha Guarda da Portela em "Tudo Azul" ou a faixa "Get Back" no disco-testamento de Cássia Eller. Talvez seja o fato de que as primeiras imagens que vi ao voltar ao Brasil tenham sido as do jogo entre Santos e Corinthians. O fato é que estou feliz em voltar ao país em um momento como esse.
Os países que reencontramos não são os mesmos que deixamos. Em poucos meses, os seus heróis mudam de nome. Robinho, malabarista lúdico e de corpo frágil. Diego, que, no desejo expresso de ficar no Santos, de não partir para a Europa, sintetizou aquilo que pulsa de forma subterrânea em todo o Brasil. Um desejo de re-invenção, de pertencimento. De re-territorialização, na contramão daquilo que acontece em outras partes do mundo.
Estamos nos encaminhando, aqui, para o redescobrimento das utopias? Talvez. De qualquer forma, despeço-me pedindo perdão pelo possível excesso de otimismo. Você sabe: um otimista é alguém que passou tempo demais com pessimistas. Até breve e um ótimo 2003 para todos...


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