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WALTER SALLES
Panaméricas não-utópicas
Toda vez que sentia vontade de viajar, Groucho Marx
declinava da idéia e optava por
comprar um terno. "Um terno
novo já é o estrangeiro", dizia.
Mais lacônico, Fernando Pessoa
escreveu: "Não evoluo. Viajo".
Os tibetanos discordariam. Para eles, as viagens marcavam um
retorno ao que era essencial. Uma
coisa é certa: aqueles que partem
não são os mesmos que retornam.
Algo se transforma, ou se perde,
no caminho. Inevitavelmente,
quer se queira, quer não.
Volto ao Brasil depois de três
meses e 14 mil quilômetros na estrada, filmando em vários países
deste continente em transe que é
a América Latina. A poeira ainda
não baixou o suficiente para permitir uma decantação da viagem.
Os momentos que vivemos parecem às vezes difusos, os tempos se
confundem, mas os rostos das
pessoas que encontramos no caminho permanecem inscritos na
memória.
Os conflitos que presenciamos
ao longo da estrada também ficarão conosco por muito tempo.
Embates entre carabineiros e índios mapuches no sul do Chile, ou
entre os grevistas da mina de cobre de Chuquicamata e as autoridades de Calama, perto da fronteira entre o Chile e a Bolívia.
Conflitos que poderiam ser resumidos em poucas palavras: injustiça social, intolerância, incapacidade de aceitação do outro.
Se há uma imagem recorrente
que nos vai acompanhar, é a das
centenas de homens e mulheres
que vimos à deriva, caminhando
à beira das estradas, à procura de
terra e trabalho.
No avião, entre Buenos Aires e o
Rio de Janeiro, leio textos sobre
migração e desterritorialização,
publicados em uma excelente revista mensal mexicana, "Letras
Libres", que me foi dada por Gael
Garcia Bernal, um dos atores do
filme que estamos fazendo. Hans
Magnus Enzensberger, autor de
"A Grande Migração", fala na revista de um tema central: o exílio
e o choque com o outro. Já o sociólogo Roger Bartra escreve sobre a
errância e as formas de expressão
que atravessam fronteiras -ou
não.
Bartra traz à tona um tema crucial: como fica a criação artística
em um continente marcado pela
desterritorialização?
Para ajudar na resposta, Bartra
lembra que um teórico como
Kant arquitetou seu pensamento
filosófico sem jamais ter saído de
sua cidade natal, Konisberg. Já
Walter Benjamin passou boa parte da vida na estrada. De um lado, uma obra enraizada e profundamente racional. Do outro, uma
obra fragmentada, profética.
Uma não invalida a outra, lembra Bartra, mas nos permite tecer
relações entre território e produção cultural.
"Expatriados, imigrantes e desterrados fazem parte hoje de um
fluxo de proporções extraordinárias, uma descomunal massa heterogênea composta não somente
de milhões de pessoas, mas também de inúmeras obras, imagens,
idéias e textos que se derramam
entre culturas e sociedades diferentes", sugere Bartra. E conclui:
"É possível que dessa massa em
movimento surjam pessoas que,
no meio da confusão reinante,
poderão propor novas formas de
expressão".
Corta. Talvez seja o efeito criado pelos novos discos de Elza Soares, da Velha Guarda da Portela
em "Tudo Azul" ou a faixa "Get
Back" no disco-testamento de
Cássia Eller. Talvez seja o fato de
que as primeiras imagens que vi
ao voltar ao Brasil tenham sido as
do jogo entre Santos e Corinthians. O fato é que estou feliz em
voltar ao país em um momento
como esse.
Os países que reencontramos
não são os mesmos que deixamos.
Em poucos meses, os seus heróis
mudam de nome. Robinho, malabarista lúdico e de corpo frágil.
Diego, que, no desejo expresso de
ficar no Santos, de não partir para a Europa, sintetizou aquilo
que pulsa de forma subterrânea
em todo o Brasil. Um desejo de re-invenção, de pertencimento. De
re-territorialização, na contramão daquilo que acontece em outras partes do mundo.
Estamos nos encaminhando,
aqui, para o redescobrimento das
utopias? Talvez. De qualquer forma, despeço-me pedindo perdão
pelo possível excesso de otimismo.
Você sabe: um otimista é alguém
que passou tempo demais com
pessimistas. Até breve e um ótimo
2003 para todos...
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