São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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FERREIRA GULLAR

Bagunça


Espero que o novo prefeito do Rio coloque ordem na cidade; estamos à beira do caos

ESTOU EM fase de resmungos. Espero que o leitor não se aborreça, uma vez que quem muito reclama corre o risco de virar um chato. E isso é tudo o que um cronista não pode ser.
Mas que hei de fazer se tantas coisas erradas me saltam aos olhos? Há quem diga que reclamar não adianta, mas, como não posso consertar o errado, só me resta resmungar na esperança de que as autoridades cumpram seu dever.
Se não fosse um resmungão, faria vista grossa ao que me desagrada e iria à praia. Só que no caminho, de minha casa à praia, já recomeço a resmungar porque uma dupla de marmanjos estacionou o carro quase embaixo de minha janela, escancarou as portas, pôs o rádio no máximo e começou a bebericar cerveja. Como hoje é domingo, os dois ficarão ali até anoitecer, azucrinando-me os ouvidos, mesmo porque não tenho a menor intenção de ir à praia, pois ali está programado um show musical de estremecer quarteirão.
Às vezes me pergunto se o problema não sou eu mesmo, que me tornei um velho turrão. Mas não. Outro dia, conversando com uma amiga, também moradora de Copacabana, ouvi dela a seguinte história: na sua rua (como na minha) costuma passar um carro com alto-falante estridente anunciando a compra de metais velhos, de panelas furadas até ferros de passar roupa desativados.
Um vizinho, irritado com aquilo, berrou da janela: "Pára com isso, idiota!" A resposta, pelo alto-falante, foi fulminante, ofendendo até a mãe do morador. Não demorará muito, alguém vai perder a paciência e revidar a tiros a impertinência do comprador de metais velhos. É justiça pelas próprias mãos, já que as autoridades não agem.
E não agem nem quando solicitadas. Essa amiga me disse que ligou para a prefeitura reclamando, e o funcionário respondeu que o problema era da polícia. Ela então ligou para a polícia que a mandou queixar-se à prefeitura. A verdade é que recentemente foi sancionada uma lei que proíbe esse tipo de propaganda nas ruas do Rio, mas a lei é descumprida e fica por isso mesmo.
Insisto neste assunto porque o Rio terá em breve um novo prefeito e a nossa esperança é que ele tome alguma atitude para pôr ordem na cidade, já que nos encontramos à beira do caos.
Vejam bem: ao lado do meu edifício, há uma rua de passeio e, à entrada dela, uma placa enorme adverte: "É proibido estacionar carros, caminhões e motocicletas nesta rua". Pois bem, há anos e anos, a rua vive repleta de automóveis, caminhões e motocicletas. Os guardas de trânsito e os membros da polícia municipal passam todos os dias por aqui e nada fazem. Nunca nenhum carro foi rebocado nem multado. Por que?
Porque a desordem ocupou o lugar da ordem, porque o desrespeito à lei ocupou o lugar do respeito, e aqueles que têm por função fazer como que todos cumpram as leis, não estão nem aí. Levam propina.
Um vizinho meu, que costuma ir à praia de manhã cedo, quase foi mordido por um cachorro que um sujeito soltou na areia. Ele estava acompanhado de dois cães enormes e os deixou correrem na praia à vontade, latindo e ameaçando as pessoas. Meu vizinho caminhou até um jipe onde dois guardas conversavam indiferentes ao que se passava. Quando pediu a eles que tomassem alguma providência, já que era proibido levar cães para a praia, fizeram de conta que não ouviram e lhe deram as costas. Ou seja, quem exige que se obedeça à lei, na opinião da polícia, não passa de um chato.
Esse é o quadro geral na cidade do Rio de Janeiro. Poderia acrescentar muitos outros casos, como, por exemplo, estacionar veículos na passagem de pedestres, andar de bicicleta e até de moto nas calçadas, sem levar em conta os transeuntes. Tudo isso é feito em larga escala e a qualquer hora do dia ou da noite. Tornou-se normal.
Não faz um mês, deparei-me com um senhor caído no chão, a testa sangrando: fora atropelado, ao sair do edifício, por um triciclo que trafegava em alta velocidade pela calçada. Violar as normas do trânsito, da segurança dos cidadãos, do lazer sem sobressaltos, são fatos tão freqüentes que, se alguém se atreve a protestar ou reclamar, corre o risco de ser agredido, sob o olhar indiferente dos policiais. Estes, quando não se omitem porque estão mancomunados com os infratores, omitem-se porque não querem se aborrecer nem meter-se em encrencas. E, se o problema é um assalto à mão armada, aí mesmo é que não se pode contar com eles: ganham muito pouco para arriscar a vida.
Pergunto, então, ao novo prefeito: que acha o senhor que se deve fazer quando o desrespeito às normas virou norma e aqueles que têm o dever de zelar por elas nada fazem? Tocar um tango argentino?


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