São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2010

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OPINIÃO

Diretor monta farsa para vencer as barreiras do mundo e chegar ao real

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Desde, pelo menos, "Cabra Marcado para Morrer", Eduardo Coutinho é presença regular em seus filmes.
Busca entrevistados, visita locações, eventualmente realiza transações comerciais (paga os entrevistados).
Essas aparições procuram evidenciar que um filme não se faz por si só, não é um ato mágico. Um filme é feito, e feito por alguém, o que implica trabalho e custo. As entradas em cena do diretor buscam deixar claro a natureza de certas relações que envolvem uma filmagem.
Esse movimento parece contradizer o outro, o do documentário, um filme feito supostamente para mostrar "o real". E o cinema de Coutinho começa por questionar esse real, que pode ser tão fabricado quanto a ficção.
Depois disso, os filmes dedicam-se não raro a mostrar o quanto é frágil a fronteira entre real e imaginário. O quanto aquilo que chamamos de real é necessariamente contaminado pela imaginação dos personagens.
Talvez esse tipo de procedimento tenha começado em "Cabra Marcado para Morrer", quando o cineasta retorna, em 1981, à cidadezinha que tivera de abandonar às pressas em 1964, quando realizava um filme sobre as Ligas Camponesas.
Ali é essencial o contato com as pessoas, a maneira como aos poucos se retoma a confiança de pessoas perseguidas durante a ditadura.
É essencial, mas não é central. Central é o tempo, as mudanças que afetaram essas pessoas e o vilarejo quase fantasma, onde em outros tempos se forjava a rebelião camponesa. Isto é que o filme consegue captar: a passagem do tempo, seus traços marcados nos rostos, nas atitudes, no próprio medo.
Todo filme de Eduardo Coutinho, desde então e sempre mais, é um esforço para permitir que o mundo se manifeste plenamente. Não ao acaso: trata-se uma manifestação encaminhada pelo entrevistador (Coutinho, quase sempre), mas cujo objetivo final é permitir que uma personalidade e um imaginário se manifestem de maneira autônoma. Ou seja, que a realidade se revele ao espectador.
Talvez o ponto mais evoluído dessa busca esteja em "Jogo de Cena". Ali, "pessoas comuns" narram fatos de sua vida, em seguida interpretados por atrizes. Ao final, porém, já não sabemos distinguir quem é atriz e quem é "pessoa comum".
Coutinho fabrica um labirinto onde aprisiona nossas ilusões (do que seja real ou ficção, representação ou verdade) sem renunciar, no entanto, ao documentário.
A realidade não se mostra facilmente, como sabem os bons cineastas: há que montar uma farsa para vencer as barreiras do mundo da comunicação e chegar ao real. A essa aventura Coutinho convoca seu espectador.


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