São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2004

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O dono da história

Divulgação
Cena de "Narradores de Javé", de Eliane Caffé; ambientado no sertão brasileiro, o filme estréia amanhã, com o ator José Dumont no papel principal


Patrimônio oral e discurso histórico se enfrentam de forma cômica em "Narradores de Javé"

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Entre os "Narradores de Javé", Antônio Biá é o único que sabe deitar no papel as histórias contadas de boca em boca -e de uma geração a outra.
É a ele, portanto, que os demais personagens do fictício povoado perdido no sertão brasileiro e ameaçado de desaparecimento pela construção de uma represa entregam a missão de eternizar em livro sua própria história, numa tentativa de escapar das águas ou do esquecimento.
Quando estudava a trama desse segundo longa-metragem da diretora Eliane Caffé, 42 (que estréia amanhã, em 40 salas brasileiras), o ator José Dumont, 53, se indagou: "Mas como Biá conseguiu se tornar um alfabetizado entre analfabetos?".
Para buscar a resposta, o ator não pôde evitar remexer em sua própria trajetória. Nascido no interior da Paraíba, numa família numerosa e sem recursos, Dumont é autodidata. Aos 6 anos de idade, aprendeu sozinho a ler.

Enxada
O fato de ser alfabetizado não o poupou dos trabalhos típicos da região empobrecida, como o da "enxada". Dumont foi também cabo do Exército e morava em João Pessoa, a capital paraibana, quando decidiu, num estalo, tomar o rumo do Sudeste, depois de ouvir a canção "Here Comes the Sun" (Aí Vem o Sol), dos Beatles.
Hoje, o ator diz que se sente um "cidadão do mundo, tão nordestino quanto japonês", embora valorize o que conseguiu em São Paulo. "Foi em São Paulo que tirei minha carteira de identidade", diz. Foi também nessa cidade que se tornou ator, mas um ator identificado com certa representação do homem nordestino associada à privação e ao sofrimento, traço que Dumont só agora, em "Narradores de Javé", acredita haver conseguido superar.
"Nunca falaram comigo. Nunca me perguntaram como eu via o sertão. Certamente eu trazia esse lastro emocional, que realmente era sofrido, embora dentro de mim existisse uma pessoa alegre", afirma.

Tom
Mais que uma pessoa alegre, o ator acredita que a diretora - com quem havia trabalhado no anterior "Kenoma" (1998)- soube ver nele seu "tom natural, que é o da comédia, do deboche".
"Fiz, por exemplo, "Morte e Vida Severina" [de João Cabral de Melo Neto], que é uma obra-prima, mas com a qual não me identifico nada. Não me identifico com essa ótica fatalista. Gosto da ironia. Eliane sacou isso. A gente opera numa frequência muito parecida".
Dumont diz que prefere a comédia ao drama porque a primeira "oferece saídas, enquanto o drama é apenas um relato".
Além do "humor, da ironia e do deboche" que compartilha com o personagem de Biá, Dumont é também um amante das teorias, das sínteses e das idéias supostamente visionárias, expressas em tom poético.
Trata-se de uma herança familiar, como contou em debate sobre o filme, ocorrido na Cinemateca Brasileira, anteontem. "Sempre ouvi meu pai dizer: "Vai chegar um dia em que a roda grande vai correr dentro da roda pequena". Não sei se é uma máxima socialista ou se ele se referia à entrada do homem na cultura subatômica."

Leis
De sua parte, Dumont acredita que o universo seja regido por "três leis básicas". A primeira "é a geral: o sol brilha para todos". A segunda, "a individual: cada um faz dessa luz o que quiser". E a terceira é "a de relação", sobre a qual o ator dá menos explicações. Entende-se que é algo como o que resulta da primeira e da segunda aplicadas simultaneamente, enfim, na convivência humana.
Dumont também já se dedicou a refletir sobre a questão da reforma agrária, até concluir que há um erro no foco com que é abordada. "Quer minha opinião: a questão não é a terra, é a água. Todas as fontes no Brasil deveriam ser públicas. Esse é um pensamento para o futuro."
Um pensamento para o presente é o de que "o homem não precisa nem deve trabalhar mais do que seis horas por dia. Mas o capital tornou a vida muito cara".
Outro (pensamento) é o que atribui ao perfil, literalmente, a razão pela qual atores como ele tenham pouco espaço na TV brasileira: "A diferença é só longilíneo ou chatilíneo. Meu tipo é o chatilíneo, que não tem espaço. Se eu fosse longilíneo, teria um salário bom, estaria na televisão. Olha só os trilhos sutis por onde anda a humanidade... Nasci num lugar que era assim. Meu tipo é esse."

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