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CONTARDO CALLIGARIS
São Paulo 450 anos
Durante as Olimpíadas de
2000, eu estava em Sydney,
Austrália.
Na noite do encerramento dos
jogos, junto com alguns outros
milhares de humanos, eu contribuía para abarrotar a península
onde surge o esplêndido edifício
da Ópera de Sydney. Todos contemplávamos uma festa de fogos
de artifício.
Bem ao meu lado, um jovem casal se abraçava. No auge dos fogos, o rapaz apertou forte a moça
e lhe disse, feliz: "And we live here", "E nós moramos aqui".
Gostaria que nestes dias, em
São Paulo, houvesse ao menos um
casal para viver um momento parecido, para sentir-se feliz de viver
aqui. Talvez aconteça amanhã,
na inauguração das fontes do
parque Ibirapuera. Ou no sábado, quando Caetano cantará
"Sampa" na esquina da Ipiranga
com a São João. Ou, então, na
avenida 23 de maio, domingo,
durante a Parada São Paulo 450
anos.
Claro, Sydney compete na divisão do Rio de Janeiro, de Veneza,
Roma, Paris, Londres, Nova York
e por aí vai: é uma cidade excepcionalmente bonita. E, sobretudo,
a frase do moço australiano devia
expressar também a satisfação de
viver numa cidade amiga, de andar por ruas animadas noite
adentro, mas nunca ameaçadoras, de sentir-se amparado por
uma comunidade que protege e
assiste seus membros nas horas
difíceis.
Não vamos perder ânimo. Afinal, não se sabe se primeiro vem o
ovo ou a galinha. É certo que o orgulho e a alegria de viver numa
cidade são o efeito dos direitos
concretos que ela garante a seus
cidadãos. Mas vale também o inverso: esse orgulho e essa alegria
talvez sejam requisitos para que a
cidade se transforme a ponto de
merecer esses sentimentos.
Pensando, então, num casal
paulistano que pudesse viver o
mesmo momento encantado do
casal de Sydney, sonhei com algumas festividades que não estão no
programa.
1) Poderíamos ter proposto um
concurso de poesia para poemas
de, no máximo, três linhas (espécie de haicais japoneses), inspirados por São Paulo. Aliás, dois
concursos: um para poetas publicados e outro aberto a quem quisesse concorrer. Uma comissão escolheria, sei lá, cem poemas. As
agências de publicidade e seus
clientes teriam sido contatados e,
quem sabe, aceitassem que os
outdoors da cidade, grandes e pequenos, fossem substituídos progressivamente por um fundo
branco com, em destaque, o texto
de um poema, sem o nome do autor. Para que ninguém ficasse
triste, apareceria, em letras menores, o anunciante: cortesia do
Banco Fulano. No meu devaneio,
durante um mês no mínimo, TODOS os outdoors da cidade seriam poemas.
Haveria versos incompreensíveis, outros que provocariam o riso. Os analfabetos pediriam que
alguém lhes dissesse o que está escrito. Mas, mesmo zombando,
durante um mês, os paulistanos
seriam todos leitores de poesia.
2) Não faltarão, nesses dias e
durante o ano, exposições e concertos comemorativos. Mas teria
gostado que os artistas e músicos
paulistas tivessem sido comissionados para que pintassem, concebessem ou compusessem pensando na cidade. À força de respeitar
o subjetivismo de nossa época e o
mito da inspiração, esquecemos
que, no passado, alguns dos melhores momentos da produção artística (a começar pela Renascença) foram efeito de encomendas.
Nas praças da cidade, aconteceriam concertos públicos das obras
(de jazz, música clássica, samba e
MPB) compostas nesta ocasião.
Quanto às obras de artes plásticas
comissionadas, seriam exibidas
numa mostra permanente, o ano
todo, na Oca e nas salas da Bienal
do Ibirapuera. Como já aconteceu, as escolas visitariam de manhã, e o acesso seria gratuito nos
domingos.
3) Dois anos atrás, pois leva
tempo, poderíamos ter pedido a
Zé Celso e ao Teatro Oficina que,
com a ajuda dos melhores historiadores paulistas, escrevessem e
montassem uma peça sobre a história de São Paulo. Não uma peça
para os espectadores que frequentam os teatros, mas um espetáculo em praça pública, no vale do
Anhangabaú, na praça da Sé,
embaixo do Minhocão com os espectadores em cima etc. A peça
seria produzida num lugar diferente a cada semana, animando
a cidade inteira com sua própria
história, por truculenta que tenha
sido.
As outras companhias paulistas
de teatro, também comissionadas, encenariam peças sobre a vida em São Paulo, pelas ruas da cidade. O mesmo poderia acontecer
com o balé e a dança moderna.
4) Falando em dança, tenho
mais um sonho. Houve o baile do
Réveillon na Paulista, que foi ótimo, e haverá outros. O problema
dessas reuniões é que elas não
juntam as diferentes camadas de
nossa sociedade. Com o pretexto
(justificado) da insegurança, a
classe média não se aventura.
Ora, em Paris, eu gostava de frequentar os bailes do 14 de Julho, a
festa nacional francesa. Havia
bailes noite adentro nas casernas
dos bombeiros e da gendarmaria.
Essas veneráveis instituições ganhavam um dinheiro vendendo
refrigerantes e cerveja, e todas as
classes dançavam juntas numa
segurança absoluta. Os bombeiros e policiais (homens e mulheres) que não estivessem de plantão dançavam com os cidadãos.
Não seria mal se começássemos a
perceber as forças da ordem não
como inimigos ou como jagunços
que nos protegem, mas como pessoas que nem a gente, a quem é
delegada a função essencial de
tornar nossas ruas acolhedoras e
nossa vida mais pacífica. Adoraria valsar com uma PM em uniforme de gala na caserna da Rota
da avenida Tiradentes. Depois
disso, vindo do aeroporto, o edifício pararia de me parecer sinistro.
E nós moraríamos aqui.
ccalligari@uol.com.br
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