São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

A leitora e seus cappelletti


Faziam bolinhas de recheio e colocavam no centro da massa e juntavam as pontas


AS MINHAS leitoras sempre me surpreendem. Vejam abaixo a Deize com seus cappelletti: "Era o aniversário do "nonno". As crianças, já de pé, tomavam o café às pressas e corriam ao terreiro, onde, sob as ordens da "nonna", aos trambolhões recheados com grandes risadas, pegavam o maior frango, especialmente criado para essa data.
Sem nenhum pudor ou melindre, a avó destroncava o frango, mergulhava-o na água fervente e passava a depená-lo com perícia e rapidez, tirando suas entranhas e lavando-o escrupulosamente. Sobre o buraco mais distante do fogão já se colocara uma grande panela de ferro com água. Dentro dela, logo que começasse a ferver, jogava-se o frango inteiro, incluindo os miúdos muito bem limpos, um pedaço generoso de toucinho, uma cebola inteira, um ramo de alecrim, salsa, cebolinha e o que mais houvesse com jeito de tempero.
As tias, logo que o forno estivesse no ponto exato do calor, retiravam a lenha em brasa com uma longa vassoura feita de galhos verdes, deixando algumas brasas amontoadas nos cantos.
A essa altura, a "nonna" já enchera uma grande bacia com quilos de trigo que formavam uma montanha branquinha, fizera um buraco no meio e ali ia colocando dúzias de ovos inteiros, descartando as cascas com maestria. Com a mão direita, começava a misturar o trigo com os ovos, enquanto, com a esquerda, virava a bacia para ajeitar a massa. Depois de todo o trigo estar incorporado aos ovos, tirava o bolo de massa da bacia a passava a sová-la sobre a mesa, tornando-a lisa e elástica.
Nesse ponto, era a vez do pau de macarrão entrar em ação. Era longo, feito de um antigo cabo de enxada de guatambu, liso pelo uso. Separava-se a massa em dois ou três pedaços e trabalhava-se um de cada vez. Os pedaços que não estavam sendo trabalhados voltavam para a bacia, onde eram cobertos por guardanapos alvíssimos, para que não perdessem a umidade. Com habilidade tecida ao longo de toda uma vida, o pau de macarrão, nas mãos da avó, ia moldando a massa e transformando-a numa grande roda, muito fina, que, de tão grande, caía ao lado da mesa.
Enquanto a "nonna" abria a massa, as tias retiravam da panela do caldo os miúdos do frango e o toucinho já cozidos e os moíam, juntando aos poucos farinha de rosca, queijo parmesão ralado e, por último, um pouco de noz-moscada. Estava pronto o recheio dos cappelletti.
Abria-se então a grande mesa da sala de refeições, as crianças e as mulheres sentavam-se ao seu redor, a "nonna" dividia a massa em grandes tiras, que cortava em pequenos quadrados, que eram então distribuídos ao longo da mesa. E todos, o mais rapidamente que podiam, faziam pequenas bolinhas de recheio, colocavam no centro do quadradinho da massa, dobravam em diagonal e depois juntavam as pontas do triângulo assim formado, dando à massa a forma do chapeuzinho.
Os cappelletti, aos poucos, iam enchendo grandes peneiras de taquara cobertas com panos de prato e colocadas à janela para que a massa enxugasse.
O avô dirigia-se ao porão, um lugar que ele julgava secreto, mas de domínio público (as crianças sabiam exatamente o que se guardava ali...), e escolhia o "fiaschim" de seu chianti preferido e guardado para as melhores ocasiões. O frango era retirado do caldo com a escumadeira e, finalmente, os cappelletti já prontos eram entornados nele!
Todos à mesa. O "nonno" à cabeceira, a "nonna" à sua direita, a grande terrina com os cappelletti in brodo à sua frente, ele ia servindo a todos, adultos e crianças, aquele caldo cheiroso e aquela massa saborosa.
Gotas de vinho eram juntadas ao caldo, mesmo para as crianças. Não havia parabéns nem presentes. Só a presença e a comunhão de todos."

ninahorta@uol.com.br


Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Comida: Jaca, ame ou odeie
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.