São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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Minha heroína, Janeth Jackson

Exposição do seio da cantora em programa ao vivo põe hipocrisia norte-americana em evidência

FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

Pode ser um trabalho sujo, mas alguém tem que fazê-lo. Três semanas depois do escândalo do busto, quase ninguém saiu em defesa de Janet Jackson. Eu o faço de todo coração. Ao expor um seio por dois segundos em um golpe publicitário muito eficiente, a cantora expôs, igualmente, quanta gente boba temos nos EUA. E devemos agradecê-la pelo serviço público genuíno que ela prestou.
Seria possível argumentar que Janet Jackson é a única figura honesta nesse Super Bowl da hipocrisia. Os objetivos dela eram transparentes -ressuscitar uma carreira em decadência, às vésperas do lançamento de seu novo álbum-, e Jackson conseguiu o que queria. Não está fingindo muito remorso, aliás. Jackson se recusou a aparecer na entrega do prêmio Grammy porque a rede de televisão CBS havia solicitado que se submetesse a um canhestro e lacrimoso ritual de pedir desculpas ao país pelo crime cometido uma semana antes. Em contraste, Justin Timberlake fez o que lhe mandaram, como um menino de escola enviado ao escritório do diretor para uma reprimenda.
Para que os protestos generalizados tivessem justificativa, seria preciso acreditar que as famílias da nação foram apanhadas completamente de surpresa pelo "pas-de-deux" de Janet e Justin enquanto assistiam a um espetáculo do gênero "Mulherzinhas". Como disse Laura Bush, "os pais não estavam prevenidos, para desligar seus televisores antes que aquilo acontecesse". Não estavam? Antes do ocorrido os pais viram uma apresentação na qual Nelly, com a mão na virilha o tempo todo, dava a ordem para que uma multidão de "cheerleaders" arrancasse as saias. Que sinais esses adultos pobres e indefesos estavam esperando antes de afastar seus filhos do televisor? Aparentemente, só uma cena de estupro simulado serviria como alerta suficiente.
E, depois do fato, a audiência simplesmente não conseguia parar de assistir. O serviço de busca Lycos, na internet, informou que o número de buscas pela expressão "Janet Jackson" bateu o recorde dos atentados de 11 de Setembro, estabelecido pouco depois dos ataques.
Para as pessoas que ainda não estavam saciadas, os canais de notícias na TV a cabo não paravam de repetir o vídeo, para nos lembrar o quanto a cena fora deplorável. Mesmo que a essa altura as redes de televisão estivessem ocultando o seio com um borrão eletrônico, ainda havia certa emoção erótica a ser extraída: um homem arrancando a roupa de uma mulher era tão excitante para a platéia quanto a carne revelada pelo gesto, ou talvez até mais. Mas admiti-lo em voz alta é tomar um caminho que nossos guardiões morais não aceitam. A regra não escrita de nossa cultura é a de que o público está sempre certo. A idéia de que as pessoas poderiam exercer o livre arbítrio e desligar a TV nos programas de mau gosto, ou evitar a televisão de vez jamais é mencionada na TV, por motivos óbvios relacionados aos interesses fiscais das redes. Não é certo insultar os fregueses.
Já que o público não tem nenhuma responsabilidade sobre cenas como a do Super Bowl, quem deve ser responsabilizado? Se estudarmos as admoestações dos programas sobre o assunto, ou as tiradas dos editoriais do "Wall Street Journal" e de organizações direitistas, o padrão descoberto será revelador: a MTV, a CBS e sua matriz, Viacom, são os únicos alvos de invectivas. Já a National Football League (NFL), organizadora do Super Bowl, escapa praticamente sem menção. Culpar a operação esportiva de mais alta audiência no país, afinal, acarretaria o risco de insultar os espectadores de futebol americano, aos quais esses vigilantes da respeitabilidade moral atendem, em busca de diversão e de lucros.
Há quem preveja que retardar as transmissões de eventos ao vivo em alguns segundos para impedir a ocorrência de novos "defeitos de guarda-roupa" (como acontecerá durante a transmissão da cerimônia do Oscar na noite do próximo dia 29) será a morte da TV espontânea, ao vivo. Mas assim que a audiência de um programa de premiação cair, esse novo profilático eletrônico será discretamente abandonado.
Jackson, a grande vencedora de todo o episódio, já está de volta às telas. Sua reabilitação oficial começou logo depois do Super Bowl, quando a BET (Black Entertainment Television) começou a transmitir uma série de dez programas curtos sobre o "mês da história negra", em que Jackson apresenta perfis de figuras históricas importantes como Harriet Tubman e Sidney Poitier.
Diz o comunicado da rede sobre a série: "A sra. Jackson usa um clássico conjunto preto nos programas". A roupa de dominatrix que ela usou no Super Bowl não era preta e clássica, também? Bem, jamais subestimem o poder da sinergia. Afinal, a BET é mais uma subsidiária controlada integralmente pela Viacom.


Tradução Paulo Migliacci


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